Dos escombros às vitrines: as labaredas que insistem em nos queimar
Notas sobre a exposição Museu Nacional vive: arqueologia do resgate
Aline Montenegro Magalhães
Em um momento em que o obscurantismo parece em vias de tomar conta de tudo e que a demonização do Estado não reconhece as consequências disso num país como o Brasil, um incêndio destruir o mais antigo e mais importante centro de ciências do Brasil é uma metáfora sombria e literal demais.
Vítor Paiva
A caminhada entre o Museu Histórico Nacional (MHN), na Praça Marechal Âncora e o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), próximo à Praça XV, na última sexta-feira de abril, me lembrou o caminho percorrido das grades da Quinta da Boa Vista até o edifício do Museu Nacional, naquele triste 3 de setembro de 2018. Como é sabido, na noite anterior o palácio ardia em chamas e, ali numa manhã de segunda-feira, eu me juntava à procissão de pessoas que chegavam como que para velar um morto. Muitas lágrimas, o desespero por tantas perdas e o cenário desolador de uma ruína exalando fumaça e o cheiro forte de queimado. O incêndio continuava em nosso peito angustiado.
Mas a chegada ao CCBB deu um certo conforto à minh’ alma, pois me fez perceber que o Museu Nacional não havia morrido com as labaredas que consumiram grande parte do seu prédio e seu acervo. Graças ao cuidadoso e competente trabalho de resgate e de pesquisa do que sobrou da tragédia, realizado pelos pesquisadores e funcionários da instituição, foi possível constatar que o Museu Nacional VIVE. Por isso, esse foi o nome dado à exposição dos objetos retirados dos escombros e apresentados nas vitrines.
Ocupando duas salas do segundo andar do CCBB, a exposição apresenta 180 itens, sendo que apenas 103 foram recuperados das cinzas e os demais não sofreram danos por estarem em outras instituições no dia. Embora essa quantidade supere a expectativa daqueles que, acompanhando a tragédia pelas telas da TV, do celular ou do computador, achavam que só o meteoro de Bendegó resistiria ao fogo, nos faz pensar sobre a dimensão da perda. Afinal, o que significa uma centena de objetos frente aos milhares ali preservados ao longo de 200 anos de trajetória da instituição? E o que restou desse acervo foi organizado por áreas do conhecimento, quais sejam, etnologia, antropologia arqueologia, paleontologia, vertebrados, invertebrados, entomologia e geologia, lembrando a expografia do Museu Nacional antes do incêndio.
Mirar os objetos nas vitrines me causou dor e alegria. A dor pelos danos sofridos e alegria por estarem ali, não terem desaparecido. Alguns objetos eram apresentados com legendas mostrando imagens de como eram antes, nos possibilitando mensurar os estragos causados por 6 horas de fogo. Materiais como cerâmica, ferro e vidro fundiram-se, dando outra composição aos objetos. Cores foram alteradas e muitas de suas pinturas e inscrições, apagadas. Os danos do fogo passam a marcar indelevelmente a história desses objetos. Seriam novos objetos?
Pesquisas foram interrompidas com a tragédia, mas outras surgem no caminho. Indesejadas, sim, porém necessárias, pois são investigações sobre o impacto do incêndio no acervo, nas estruturas do MN e na produção do conhecimento. É o que demonstra a última parte da exposição, cujo texto final termina com a frase “Frente aos desafios, a pesquisa se transforma, mas não retrocede”.
Enfim, ao visitar a exposição, miramos os vestígios da destruição que também são provas da sobrevivência e reafirmam: o museu nacional vive!
Vive no CCBB, nas escolas, na História da Ciência brasileira, na vida de todos nós, mesmo que as labaredas insistam em nos queimar.
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As labaredas que nos queimam (I)
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