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Independência para quem?

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civismo não tem idade.jpg

por Carina Martins

A fotografia acima, do fotógrafo Jorge Couri, foi publicada com a legenda “Civismo não tem idade”, no jornal Diário Mercantil, em Juiz de Fora, no dia 07 outubro de 1973. O jornal foi pesquisado no Arquivo Histórico da Prefeitura de Juiz de Fora para a minha pesquisa de doutorado. A imagem do jornal não está nítida e mesmo o ato de fotografá-la, tendo em vista que não há ainda sua versão digitalizada, altera a qualidade da mesma.

A senhora negra (descalça?) está sentada em uma cadeira pertencente ao acervo do Museu Mariano Procópio, na Galeria Maria Amália, em meio a esculturas e pinturas. À sua esquerda, o busto de Princesa Isabel; à direita, uma escultura e, acima, pinturas diversas, dentre as quais Natureza morta, de Estevão de Oliveira. Apesar do aparente cansaço, a senhora mantém erguido, no braço direito, a bandeirinha do Brasil, possivelmente distribuída durante a ação cívica do Sete de Setembro, dia da Proclamação da Independência.

Na reportagem que acompanhava a fotografia, informa-se que a senhora compunha o Clube das Mães da Assistência Social Nossa Senhora da Glória. A escolha por visitar o Museu no dia da Pátria teria partido dos próprios membros do Clube. O texto exalta o flagrante do fotógrafo Jorge Couri na captura do momento, no qual a senhora está sentada em uma cadeira do acervo. Entretanto, tal instantâneo foi logo interrompido, pois os funcionários do Museu providenciaram, rapidamente, uma cadeira comum, o móvel adequado para ela se sentar. Importante notar que, diferentemente do que ocorria com o seleto grupo convidado por Geralda Armond para as tardes de Chá no Museu da Villa, que era servido nos móveis pertencentes ao fundador do Museu, dessa feita, o objeto do acervo não pôde ser utilizado pelo público visitante.

Em meados dos anos 1970, o predomínio da concepção cívica de educação em museus, que deveria ser responsável por integrar essa senhora ao “corpo” nacional, ainda era forte. Mais do que sua idade, ressaltava-se visualmente que a festa cívica proporcionada pelos museus era aberta a todas as pessoas, independentemente do gênero, classe social e raça. A partir de então, os índices de visitação tornaram-se cada vez mais relevantes para a identidade dos museus e, claro, para as negociações políticas em relação à sua manutenção e ao seu engrandecimento. Uma inflexão importante no pensamento que pautou a ação educativa nos museus históricos nas primeiras décadas do século XX, baseada na erudição do conhecimento, na abertura parcial e precária do acervo à visitação e no predomínio do “ver” e do “ler” para a compreensão da história.

Há quase uma década, o Museu Mariano Procópio está fechado para reformas, um misto de descaso do poder público, falta de recursos e dificuldades na gestão. Atualmente, apenas a Galeria Maria Amália encontra-se aberta ao público. Assim, perpetuam-se ações que promovem o acesso do público aos espaços abertos, mas inexiste uma proposta político-pedagógica que agregue produção do conhecimento à instrumentalização dos visitantes, tendo em vista a democratização do Museu. Ao contrário, é possível perceber a recorrência ao projeto nostálgico do passado, centrado no Império e nos valores patrimonialistas, que dissimula uma situação de abandono, de alienação frente às demandas sociais e de esquecimento. Entre a bandeira patriótica e a herança artística “civilizatória”, a senhora negra, portanto, permanece, simbolicamente, sentada. E eu acrescentaria, em liberdade poética, cansada de esperar.

  [cite]

Comentário

  1. Carina, obrigada por nos brindar com este sensível e instigante texto ( oportuno para data) sobre uma fotografia nada usual em museus que narram a história do ponto de vista dos que venceram. O bom é sabermos que os museus estão sempre em processo mesmo os que encenam permanentemente os mesmos objetos. O bom é sabermos que os museus jamais estão acabados, pois basta que um visitante inesperado o penetre para que o tido como eterno ou morto ressuscite, para que si julgava inerte seja removido por outras histórias,,, as subalternizadas; para o que si tomava como o lugar do silêncio e da reverência seja perturbado por outras vozes vindas do mesmo passado que ele, mas vivas no presente. Os museus podem mesmo nos fazer pensar, sentir e agir..mas a senhora negra está cansada de esperar, como disse Carina Martins

    1. Lana, que texto mais lindo, obrigada por que aqui já sinto vontade de explorar esses caminhos que você abre. Eu encerro minha tese com essa foto, ela simboliza muito para mim em toda relação com esse Museu. Obrigada por sua leitura!