Skip links

Tempos de memórias, tempos de História

Compartilhar

por Carina Martins

Tempo, tempo, tempo, tempo. Podemos medi-lo, podemos representá-lo em números, podemos percebê-lo nos objetos. Temos presente, passado e futuro? Ou tudo é junto e misturado? Se o poeta diz ver “o futuro repetir o passado”, o que seria um museu de grandes novidades? Que tempo temos no Museu da Maré? São muitas formas de responder a essas questões e o grupo do Museu da Maré decidiu contar assim…

lata da agua na cabeça
Exposição Museu da Maré. Fotografia: Caroline Martins, maio 2019. 

TEMPO DA ÁGUA

A água na história da Maré não veio do rio ou do encanamento. Ela é desafio, convite à superação. Ela é subsistência e aprendizado. A praia de Inhaúma, os contornos originais da Baía da Guanabara… Lá moravam os pescadores com toda a sabedoria da lua, dos peixes, do mar.

A região foi sendo ocupada com velocidade e foi necessário andar sobre o mar. Várias casas, chamadas palafitas, foram construídas por moradores. Entre tábuas e estacas, as palafitas desenhavam novos contornos para a Maré. Sem esgoto, a água também recebia dejetos e trazia doenças e animais.

Água é vida, fluxo, renovação. E um museu surge em um galpão destinado ao reparo de navios. Hoje, o visitante não percebe que o mar esteve ali.

Se você pudesse escolher um objeto na sua vida para representar a água, o que seria? Ele seria do passado ou do presente? Acha que a relação dos objetos com a água mudou desde o tempo de seus avós?

TEMPO DA CASA

tempo da casa
Tempo da Casa/ Museu da Maré. Fotografia de Victor Hugo Martins, jul.2019.

A casa é nosso lugar no mundo. Como eram as casas da Maré? Se você observar bem as fotografias, verá que a região foi e é ocupada por muitos tipos de casa. Uma arquiteta escreveu que a favela é labiríntica: é preciso andar sem medo de se perder, desafiar as linhas retas e ter gingado para as andanças.

A Maré teve casa de pau a pique, latões, palafitas. Teve conjuntos habitacionais construídos pelo Estado, inclusive um que era para ter sido provisório e até hoje está ali. Cada lugar possui uma característica: Nova Holanda é completamente diferente da Baixa. É preciso “olhar de ver” para perceber a criatividade dos moradores que, em condições tão precárias, tornaram uma região abandonada em palco para muitas vidas e experiências.

A palafita nos emociona pela sua altivez na água imaginária do Museu. Ao subir seus degraus, podemos imaginar o medo na alta das marés, os rangidos das tábuas, as frestas pelas quais os animais poderiam passar. Ao entrar, um cenário de acolhimento nos faz reconhecer as rendinhas de papel da avó, o pente quente da tia, os calendários da cozinha. É possível sentar e tocar, abrir as portas do armário e, sobretudo, da imaginação.

TEMPO DA MIGRAÇÃO

Em um tempo que é possível viajar pelas ondas da internet para qualquer lugar, é difícil pensar o que levava tantos homens e mulheres a irem para cidades desconhecidas, a quilômetros da terra natal. No Museu são expostas garrafinhas que recordam essas terras e a diversidade de locais de onde partiram os migrantes para a Maré. Trouxeram nas malas sua cultura, representada pelos cordéis, com muito desejo de melhoria de vida por meio do trabalho duro. Andaram em caminhões abertos, chamados “pau de arara”, e correram perigo, rumo à cidade grande, sem quaisquer garantias. Construíram casas de pau a pique e se estabeleceram como trabalhadores/as do Rio de Janeiro e, com luta e trabalho, foram reconhecidos como cidadãos e cidadãs.

E você?  Já levou sua terra para o Museu?

garrafinhas
Garrafinhas do Tempo de Migração/ Museu da Maré. Fotografia de Victor Hugo Duarte Martins, julho 2019.

TEMPO DO TRABALHO

Ferramentas e fotografias que nos lembram ofícios, mestres e saberes cada vez mais raros. O sapateiro, o alfaiate, o barbeiro, o feirante e seus objetos que nos transportam para tempos passados. Persistem em seu saber fazer e, assim, resistem à entrada dos produtos industriais que a cultura do consumo transforma em obsoletos num piscar de olhos. São ofícios da resistência, que fazem e refazem o tempo, o uso e a memória dos objetos.

Há também muitos corpos que carregam, montam, edificam, pintam, transformam o ambiente que estão. A Maré é construída por muitos trabalhadores e trabalhadoras unidos em mutirão, uma força coletiva singular que permitiu aterramentos, construções de moradias e melhoramentos para enfrentar a ausência do Estado e das políticas públicas.

O trabalho que permite a existência, a resistência, a imaginação criadora no território mareense também precisou de lutas para a conquista de direitos….

TEMPO DA RESISTÊNCIA

Foi e é necessária muita luta para a conquista e a manutenção dos direitos na Maré. Um objeto chama atenção, no meio de tantas fotografias. Um gravador. O que ele estaria fazendo ali ao lado do megafone? Com atenção, é possível descobrir o uso do instrumento na gravação dos discursos e promessas dos políticos que recebiam os moradores da Maré.  Muitos sábios não alfabetizados compreenderam que a gravação era prova para quem não tinha a honra da palavra.

Há também recibos da exploração dos militares na cobrança de taxas. Ainda  jornais que evocam as lutas da Maré e escrevem a partir do olhar de seus moradores. Há fotos que nos lembram das ocupações militares e violência do Estado. A Maré é feita de luta.

TEMPO DA FEIRA

A alimentação é primordial para o ser humano e por meio dela conhecemos culturas, sabores, odores e texturas. Acessamos a diversidade da natureza, bem como as formas de cozinhar. As feiras são fundamentais na história da Maré. Hoje, elas são menores do que em outros tempos, mas ainda podemos encontrar os alimentos mais frescos, que são disponibilizados aos moradores .No Museu, vemos as balanças que estão ali para mostrar as formas de pesar.

TEMPO DA FESTA

Estandarte_mataram_meu_gato__1636_30_05_2019
Tempo da festa, Museu da Maré. Fotografia Caroline Martins, maio 2019.

O tempo do Carnaval e seus blocos divertidos. Estandartes do “Mataram meu gato” que lembram a história do tamborim feito de um gatinho de uma dona bastante brava. Temos bate-bolas, congadas, aniversários, manifestações LGBTs, quermesses, festas de São João e forrós. Qualquer festa na Maré é momento de encontro, celebração, troca e união.

TEMPO DO COTIDIANO

No cotidiano, vemos bares e vielas. Objetos que nos fazem recordar a infância de refrigerantes açucarados e coloridos, papeis de fiados e muitas cores nas garrafas. Moedinhas que lembram que o preço durava somente um dia e os zeros tinham que ser cortados de quando em vez por conta de tanta inflação. Nas vielas, sentimos a ginga das favelas, o espaço recortado e adaptado criativamente por seus moradores/as. Placas que ensinam a não se perder nos becos e também a identificar suas casas. É um labirinto que nos faz pensar na proximidade das moradias, no que é privado e público, no calor e no barulho. Também nos faz ouvir e sentir os sons dos pés na correria das crianças…

TEMPO DA FÉ

Quantos véus nos impedem de conhecer as diversas manifestações de fé? É preciso atravessar uma cortina para entrar no recinto das religiões de matriz africana, com suas cores, cheiros e imagens. Objetos sincréticos estão ali para nos lembrar das apropriações da religião cristã. Há também guias coloridas de diferentes orixás, velas, santos e alimentos. É um altar?  Ou uma representação do altar? Em museu se reza? Em museu se conecta ao invisível? São perguntas que não fazemos aos objetos cristãos que habitam em grandes museus, com seus oratórios coloniais e terços de prata. Mas aqui muita gente corre, faz sinal da cruz e não quer entrar. Que poder tem o véu de nossa mente para ter medo de objetos?

Logo ao lado, a linda diversidade da fé, com livros sagrados, imagens de santo, ex-votos, véu de noiva e frascos de remédio. Há fé nas religiões, há fé na ciência. O ser humano parece não viver sem fé. E na Maré não é diferente!

TEMPO DA CRIANÇA

tábuas crianças
Fotografia do Acervo do Museu da Maré/ Caroline Martins, maio 2019.

Os brinquedos precisam do brincar, de serem usados, para só então trazerem diversão, alegria e descoberta. Há crianças de outros tempos, que brincavam com galinhas, brincavam nas águas do mangue, brincavam nas tábuas das palafitas. Há confecção de mesas de pingue-pongue, telefone sem fio, pés de lata e carrinhos de rolimã. Para brincar, tudo é material: pedras, bichos, brinquedos. A imaginação reinventa seus usos e transforma suas possibilidades. O tempo de criança traz risadas e leveza.

Quantas brincadeiras foram esquecidas com o fascínio de jogos eletrônicos e celulares? Por que tem tanta gente que acha que brincar na rua é perigoso?

TEMPO DO MEDO

Quais medos você tem? Já parou para pensar que muitos dos seus medos podem ser medos dos outros que sem você notar passa a ter também? Aqui no Museu há vários medos: do rato invadir o barraco e atacar os bebês enquanto dormem, das tábuas apodrecidas se romperem, da queda na água da maré, da perda de objetos importantes nas frestas das palafitas. Há o medo de perder pessoas queridas. Há o medo do esquecimento. Há também o medo das balas com endereço certo e das balas perdidas. Na favela, os corpos são alvos, seja por traficantes de facções rivais, seja pelas forças policiais do Estado. Há medo do preconceito e do racismo. Há medo de se ter medo. Há medo do medo do outro aumentar o medo nas favelas.

TEMPO DO FUTURO

Que tempos são estes que imaginamos e não conhecemos? O futuro é uma dobra do presente ou horizonte de invenção, mudança e esperança? Este tempo é aqui literalmente feito a partir dos tempos do presente, por isso mutável, coletivo, imprevisto. O tempo do futuro abriga sonhos, escritas, projetos e memórias de moradores, de artistas, de cientistas e de quem quiser contribuir. O tempo do futuro é aquele que não existe e, por isso mesmo, é construído dentro de nós no cotidiano, que precisa de trabalho, luta e sonho, de doses de poesia e política, de afeto e imaginação, de solidariedade e resistência, para desdizer os sussurros que nos iludem de que a vida não tem jeito.

Venha conhecer o Museu da Maré e construir outros futuros com a gente!

Comentário

  1. Sem afetividade a história passa desapercebida….

    1. E com afetividade a historia é um caminho de exercício da empatia e da construção do olhar crítico para o mundo que vivemos,não é?
      Obrigada por sua participação aqui no blog. Abraços,