“Seu retrato sem cor, seu recado sem voz”.
Fotografia, memória e identidade da mulher negra no século XIX.
por Aline Montenegro Magalhães e Maria do Carmo T. Rainho (Historiadora, Arquivo Nacional)
O trecho da música “Morte e vida Stanley” composta e cantada pelo grupo Cordel do Fogo Encantado foi a primeira coisa que me veio à mente ao olhar para as fotografias de mulheres vodunces – sacerdotisas do culto religioso afro-brasileiro Tambores de Mina – nas vitrines do Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho em São Luís do Maranhão, quando eu, Aline, lá estive, há um ano. Perguntei o nome delas ao educador que me acompanhava, pois, a informação não constava nas legendas, mas, para minha tristeza e desânimo, ele não sabia me dizer.
Tristeza maior é verificar que esse desconhecimento sobre mulheres negras representadas em exposições é comum em outros museus e espaços culturais. Em retratos sem cor, mulheres negras permanecem sem voz. É o que aponta Joana Flores em seu livro, “Mulheres negras em Salvador: diálogo em branco e preto” fruto de sua dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal da Bahia – UFBA. Ao identificar objetos e imagens de mulheres negras em museus como Henriqueta Catharino, da Misericórdia e de Arte da Bahia, Flores demonstra seu incômodo com o não lugar que ocupam nas exposições. Conforme a autora, não basta estas mulheres estarem presentes em suportes materiais: sem identidade, sem história, sem memória, a presença se traduz em ausência graças à violenta invisibilidade. Sobretudo quando elas são apresentadas ao lado de mulheres brancas com “nome, sobrenome e pronome”, evidenciando uma relação histórica hierárquica e tão violenta que ecoa até os dias de hoje com as chagas abertas do racismo estrutural e institucional, entranhado na sociedade.
O silenciamento sobre as mulheres negras também está evidente nas melhores intenções, quando se trata, por exemplo, de registrar o seu protagonismo. Este é o caso da visita guiada que eu, Aline, fiz na Fazenda São Luiz da Boa Sorte, no Vale do Paraíba, em janeiro deste ano, na qual a fotografia de uma jovem negra de turbante, produzida por Alberto Henschel é identificada erroneamente como Luísa Mahin, mãe do poeta, advogado e abolicionista Luís Gama e liderança da Revolta dos Malês, um dos maiores levantes de escravizados promovidos no Brasil, em Salvador, 1835. Ressalte-se, em primeiro lugar, que não há registros fotográficos da Revolta dos Malês, nem seria possível fotografar os seus participantes à época, posto que, apenas em 1839, foi anunciada a descoberta da daguerreotipia, processo fotográfico desenvolvido por Joseph Nicèphore Niépce e Louis Jacques Mandé Daguerre. Em segundo lugar, conforme informação do Instituto Moreira Salles, que detém o registro, ele teria sido produzido por volta de 1870, ou seja, quase trinta e cinco anos após o evento. Levando-se em conta a visível juventude da retratada, torna-se impossível associá-la à Luísa Mahin.
Outro aspecto causou incômodo na visita à Fazenda São Luiz da Boa Sorte: o fato de a memória da escravidão estar restrita a um espaço secundário, uma espécie de “porão”. Ausente das casas grandes dos barões e baronesas, as fotografias concentram-se no que se tenta aproximar das senzalas, onde também se encontram instrumentos de trabalho e de tortura. E é num espaço como esse que está a mencionada imagem, ladeada de outras duas de homens negros. Em nenhuma delas há legendas identificando quem são os fotografados, o fotógrafo, e, tampouco, a instituição onde estão preservadas, dando margem à imaginação de guias e visitantes.
O silenciamento sobre as mulheres negras soma-se ao uso ilustrativo das imagens. Aqui se repete o que ocorre em outros produtos culturais (e em suas peças de divulgação) nos quais as fotografias de homens e mulheres negros são empregadas descontextualizadas, sem referências quanto à sua produção, circulação e recepção. Isso se deve, em parte, a uma hierarquização valorativa das fontes, uma submissão da imagem ao texto, como se apenas este fosse dotado de confiabilidade, cabendo à imagem, como questiona Meneses, “uma confirmação muda de conhecimento produzido a partir de outras fontes”.
É possível que o equívoco na legenda da fotografia da mulher de turbante, de Henschel, em exposição na Fazenda São Luiz da Boa Sorte seja derivada, antes de tudo, à ampla circulação da imagem com essa informação. Uma busca na Internet com as palavras “Luísa Mahin”, “negra de turbante”, “escrava de turbante” e, sobretudo, associando-se estas expressões a Henschel ou Alberto Henschel, nos leva a uma grande quantidade de registros e usos da fotografia em questão, na divulgação de eventos, inclusive acadêmicos, ilustração de artigos, capas de livros, intervenções urbanas, instalações artísticas e obras de arte, como “As filhas de Eva” de Rosana Paulino, rótulos de cerveja e até tatuagens, dentre muitos outros. Esta associação não se deve, portanto, apenas a uma identificação entre a imagem da negra de turbante e Luísa Mahin mas, ao uso reiterado dessa fotografia.
Mais recentemente o registro foi utilizado no artigo “O racismo da academia apagou a história de Dandara e Luisa Mahin”, de autoria de Ale Santos. Ali, o silenciamento acerca das imagens se evidencia na primeira página, cujo topo estampa a fotografia da mulher de turbante, de Henschel, editada de modo a que se destaque apenas o seu rosto. Embora ela seja identificada com o crédito do fotógrafo e a indicação de domínio público, a ausência de dados sobre a imagem e o uso de uma versão da fotografia, sob a forma de ilustração, publicada mais adiante com a legenda “Ilustração de Luís Gama e sua mãe Luísa Mahin. Ilustração: Thiago Krening/TVE/RS”, acabam por induzir a um engano.
É certo que, se por um lado, em nenhum momento o autor identifica a fotografia da mulher de turbante como Luísa Mahin, por outro, a escolha dessa imagem para o artigo, revela uma despreocupação quanto a essa possível associação.
O uso ilustrativo ou reiterativo dessa imagem – como a de muitas outras, aliás – convoca a refletirmos que, como historiadoras, devemos percorrer o ciclo da produção, circulação e consumo das fotografias, buscando a sua agência, a produção de sentidos que elas engendram, os efeitos que produzem em sua circulação, apropriações e deslocamentos. Nesse sentido e, na trilha do que aponta Ana Mauad, insistimos na necessidade de tomar a fotografia como agente da história, não simplesmente como fonte de informação sobre o passado, tampouco tema de um estudo histórico.
Finalizamos com a feliz notícia de que as Vodunces do Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho, retratadas por Ribamar Alves, estão sendo identificadas, no primoroso trabalho de pesquisa que vem sendo realizado por Helmia Borges. São elas: Dona Luzia, Dona Celeste, Domingas Carvalho, Raimunda Durans, Tereza Cunha, Dona Honorina e Dona Evarista. E assim os retratos vão ganhando cores, vozes…
Para saber mais:
FLORA, Joana. Mulheres negras e museus de salvador: diálogo em branco e preto. Salvador: edição da autora, 2017.
MAUAD, Ana Maria. Itinerários da memória – práticas fotográficas, trajetórias profissionais e os sentidos da história. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [Online], Imagens, memórias e sons, junho, 2012. Disponível em: https://journals.openedition.org/nuevomundo/63139 Acesso em 4 de novembro de 2019.
MENESES, Ulpiano Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares, Revista Brasileira de História, vol. 23, nº 45, 2003.
THE INTERCEPT, 4 de junho de 2019. Disponível em: https://theintercept.com/2019/06/03/dandara-luisa-mahin-historia/ Acesso em 10 de julho de 2019.
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Esse texto me fez repensar meu próprio olhar acerca dessas personagens anonimas e de como o racismo estrutural talvez nos faça banalizar a importância de suas devidas identificações.
Olá Benilson,
Obrigada por seu comentário. Ficamos felizes com esse tipo de retorno, pois nos sintonizamos com reflexões que desnaturalizam esses silêncios e essas invisibilidades.
Um forte abraço.
Fiquei muito feliz em ler esses texto maravilhoso, Aline Montenegro foi minha professora na graduação. Ela é brilhante.
Querida Rosiane, muito obrigada por sua leitura e suas palavras. Um beijo grande.
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