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Miradas sobre imagens de Tiradentes

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por Aline Montenegro Magalhães

Decretado feriado nacional em 1890, quase cem anos após Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes ter cumprido a pena de morte por enforcamento, condenação recebida pela atuação na Inconfidência Mineira, o dia 21 de abril foi uma das primeiras ações da República Brasileira recém-proclamada.  Até hoje é o único feriado nacional cívico dedicado a uma personagem histórica. Os demais são alusivos a datas, como o 15 de Novembro decretado no mesmo ano.

Como bem analisou José Murilo de Carvalho, em seu livro “A formação das almas”, era preciso criar um elo entre o novo regime e a população, uma vez que a Monarquia foi deposta por um golpe militar ao qual o “povo assistira bestializado”, segundo o republicano Aristides Lobo. Tiradentes foi eleito para cumprir o papel de “formar as almas” do Brasil República. Identificado como o precursor das ideias republicanas no país, conforme a base do projeto de independência dos inconfidentes, inspirado na República dos Estados Unidos da América, Tiradentes tinha uma trajetória familiar à cultura cristã da população brasileira. E essa aproximação foi explorada e bem sucedida. Se Jesus Cristo teria sacrificado sua própria vida, condenado à crucificação, para libertar seu povo, Tiradentes padeceu na forca para libertar o país, mesmo que naquele longínquo 1789 o Brasil não existisse ainda como unidade nacional. 

E como representar esse homem santificado pela religião cívica republicana? Não se conhecia, como não se conhece até hoje, registros de época que identifiquem seu rosto. Ou seja, foi preciso idealizar uma face para esse herói que garantiria a legitimidade do novo regime, ao representar suas origens ainda no período colonial. Nesse processo, foram produzidas diversas pinturas e esculturas, baseadas em documentação escrita e aproximando as feições de Tiradentes às de Jesus Cristo: cabelos e barba longos, tendo no lugar da cruz, a corda em volta do seu pescoço ou a forca como pano de fundo da imagem. Décio Villares, Pedro Américo, Pedro Bruno, entre outros pintores, não apenas deram rosto e forma a Tiradentes, mas também representaram diferentes momentos de seu martírio.

Em minhas memórias de infância há dois retratos de Tiradentes, frente aos quais me compadecia muito, mesmo sem conhecer a história do personagem. Um, de autoria de Autran, chegou às minhas mãos como uma forma de “santinho”, desses que são distribuídos com a imagem de Santo Expedito ou de Nossa Senhora Aparecida, com uma oração no verso. Trata-se de um busto de Tiradentes virado pro lado direito, com fundo azul representando o céu. Os cabelos e barba longos e vestes brancas. Parecia mesmo Jesus Cristo, mas em volta de seu pescoço, a corda que tirou sua vida. Em um dos cantos inferiores dessa imagem, o triângulo vermelho com os dizeres “libertas que seras tamen”. Nunca mais vi “santinhos” como esse “um sóbrio busto do mártir, tornado ´retrato` oficial nas escolas, repartições públicas e nos quartéis mineiros nas primeiras décadas do século XX”, segundo Thaís Fonseca, citado por José Luciano de Queiroz Aires.

 

Tiradentes Autran
“TIRADENTES”. Quadro de Autran (detalhe). Vila Militar – Rio de Janeiro. Fonte da imagem e da legenda: http://adautogmjunior.blogspot.com/2013/04/tiradentes-1746-1792-tiradentes.html

O segundo retrato de Tiradentes estava estampado em uma das páginas da série “Grandes Personagens da História do Brasil”, produzida pela editora Abril. Meu pai tinha reunido os fascículos, que eram vendidos periodicamente nas bancas, e encadernado. Quando não tinha nada de interessante para fazer, pegava aquele livro grande de capa branca com detalhes dourados para ficar folheando. Eram horas olhando aquela imagem de “Tiradentes supliciado” de Pedro Américo, completamente chocada.

Tiradentes esquartejado
Fonte da Imagem e da legenda: https://blogdosuperrodrigao.blogspot.com/2014/07/tiradentes-esquartejado.html

O Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, é a instituição pública que preserva o maior número dessas imagens. Há, inclusive, uma sala específica só para exposição das pinturas históricas sobre Tiradentes. Apresentada por um texto que tem por título o lema de Hélio Oiticica, “Seja marginal, seja herói”, a sala propõe uma reflexão sobre a construção do herói Tiradentes, que de inimigo da nação por ter traído a Coroa Portuguesa, tornou-se símbolo de identidade nacional brasileira. Uma construção levada a cabo pelo Estado Republicano, mas que também tem suas variantes produzidas pela população e por movimentos sociais, como Zumbi dos Palmares, Antônio Conselheiro e Virgulino Lampeão – marginais que se tornaram heróis.

A primeira tela dessa sala é do “Alferes Joaquim José da Silva Xavier. ‘O Tiradentes’”, pintada por José Wasth Rodrigues, sob encomenda de Gustavo Barroso, então diretor do Museu Histórico Nacional, para integrar a grande exposição dos Centenários Portugueses, em Lisboa, em 1940. Como um estudioso e amante da história militar, Barroso queria levar para Portugal um Tiradentes jovem, vestido como Alferes, sua patente militar. Muito distante das representações sacralizadas do herói, Rodrigues enfatizou o homem Joaquim José da Silva Xavier e seu ofício pouco conhecido, na cidade de Ouro Preto, representada pelo Pico do Itacolomi ao fundo, onde atuava. Houve quem, acreditou que esta seria a imagem “autêntica” do Mártir…

Tiradentes-Alferes

“Alferes Joaquim José da Silva Xavier. ‘O Tiradentes’”, de José Wasth Rodrigues, 1940. Acervo do Museu Histórico Nacional. Fonte da imagem: https://mhn.museus.gov.br/index.php/bonde-da-historia-traz-duas-novas-visitas-mediadas-no-mes-de-abril/

Quem circunda a sala passa ainda pelos quadros, mais ou menos nessa sequência (se não me falha a memória): “Leitura da sentença dos inconfidentes” de Eduardo de Sá [1921]; “Tiradentes”, de Regina Veiga Vianna (1949), representando o personagem preso; “O Precursor” de Pedro Bruno [1922-1927] que mostra Tiradentes na prisão sendo vestido com a “alva”, olhando para o céu com os braços abertos e as mãos viradas para cima, como que pedindo clemência”; “Resposta de Tiradentes à leitura do ato de comutação da pena de morte de seus companheiros” de Leopoldino de Faria [1893]; “Martírio de Tiradentes” de Aurélio de Figueiredo (1893) e, por fim, um “Tiradentes” bem etéreo com a corda no pescoço e olhando o infinito, com um céu carregado de nuvens ao fundo“ [18..] e um busto em gesso de Tiradentes, ambos de autoria de Décio Villares.

ltima parte sala Tiradentes
Visão da última parede da exposição “Seja marginal, seja herói” dedicada à construção das imagens de Tiradentes. Museu Histórico Nacional. Fonte da imagem: https://www.facebook.com/museuhistoriconacional/photos/pcb.1048526395344851/1048524298678394/?type=3&theater

Certa vez, visitando a sala com uma turma do curso de museologia da Unirio, explicava sobre o processo de construção do herói, historicizando a produção das imagens, etc. Quando acabei de falar uma aluna fez a seguinte observação, “Mas isso aqui está parecendo os “passos da Paixão de Tiradentes”. Não contive o riso e me dei conta do quanto a nossas intenções como curadores, são confrontadas com a recepção dos visitantes e com as ressonâncias de um processo de sacralização da história, muito cara aos museus no início do século XX.

Para saber mais:

AIRES, José Luciano de Queiroz. Pintando o herói da República: a construção do imaginário mitificado de Tiradentes e o ensino de história. ANPUH – XXV Simpósio Nacional de História – Fortaleza, 2009. Disponível em: https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019-01/1548772005_5e30640dc306e76bd19608db4388dd1c.pdf

CARVALHO, José Murilo. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1990.

CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. Pintura, historia e herois no seculo XIX: Pedro Americo e “Tiradentes Esquartejado”. 2005. 365p. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas, Campinas, SP. Disponível em: <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/281081>.