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Museus contra a barbárie

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por Aline Montenegro Magalhães

É com tristeza e indignação que leio e ouço notícias sobre a recorrência de práticas de violação do corpo que remetem ao tempo da escravidão. Colombianos que desrespeitaram a quarentena foram presos pelos pés em um tronco. Sim, um tronco daqueles usados para penalizar os escravizados. Funcionária negra que teve suas mãos e seus braços amarrados, ao ser acusada de sair mais cedo do trabalho, sendo obrigada a andar assim entre os colegas, sob os insultos de “negra fujona”. São episódios que nos fazem questionar que Abolição foi essa? O que comemorar nos 132 anos da Lei Áurea?

No texto da semana passada, refletimos sobre como museus enaltecem o protagonismo da Princesa Isabel nas comemorações do 13 maio, negligenciando as lutas dos escravizados por sua liberdade. Hoje, Dia Internacional dos Museus, quando se inicia a 18ª Semana de Museus com o tema  “Museus para a Igualdade: diversidade e inclusão”, abordamos o papel dessas instituições no combate ao racismo e a práticas de violência, que nos coloca diante da incompletude da Lei Áurea tão laureada, mas também criticada por não ter garantido a tão sonhada liberdade. Afinal, como diz o samba da Mangueira de 1988, o negro está “livre do açoite da senzala, mas preso na miséria da favela.” Livre do açoite da senzala? 

No Museu Histórico Nacional (olha ele aí mais uma vez), quando elaboramos o atual circuito de exposição de longa duração, tivemos uma grande preocupação, não apenas em ampliar a presença afro-brasileira na história ali contada, tradicionalmente marcada pela invisibilidade e pela subalternidade, mas também provocar incômodos e instigar a reflexão sobre a escravidão e seus rastros. Em uma sala dedicada à economia cafeeira, as louças brasonadas e objetos relacionados aos “barões do café” foram colocados em oposição a uma parede vermelha, tomada por instrumentos de tortura utilizados na violenta relação entre senhores, escravos e Estado. Sim, o Estado assumiu o papel regulador de castigos e também penalizava fisicamente escravizados, haja vista a  prisão do calabouço, que funcionou entre finais do século XVII e meados do XIX, junto ao complexo arquitetônico onde hoje está instalado o Museu Histórico Nacional.

 

A ideia dessa disposição dos objetos era proporcionar um incômodo no público. Provocar questionamentos sobre o romantismo com que se costuma conceber o século XIX brasileiro, segundo o qual há uma grande identificação com a Casa Grande e uma sublimação da senzala. Os conflitos e as tensões não costumam ser lembrados, tornando a relação entre senhores e escravizados muito naturalizada e pacificada, à la Gilberto Freyre em “Casa Grande e Senzala”.

Embora esse incômodo acontecesse, não era o suficiente para uma reflexão mais profunda sobre a ressonância daquela realidade nos dias de hoje. Talvez, pela antiguidade dos objetos expostos, o desconforto era rapidamente acomodado com a ideia de que esse passado não mais existia. Não foram raras as vezes que ouvi visitantes agoniados exclamando: “ainda bem que isso acabou, que não há mais escravidão e nem o uso desses objetos para maltratar as pessoas”. Quando tinha oportunidade, perguntava: “será?” E a pergunta, às vezes, conseguia confrontar esse “alívio”, seguida de referências à atualidade desses mau-tratos. Quem achava que “bandido bom é bandido morto” e aplaudiam o espancamento do “ladrão” até ele aprender, se viu a repensar essa postura. Contudo, infelizmente, houve também pessoas tentando negar a violência ou ver lógica nesse tipo de prática. A professora Leila Bianchi Aguiar e sua turma de alunos da Unirio foram testemunhas de uma manifestação dessa natureza em uma visita que fizemos juntas.

Esse incômodo tornou-se ainda maior e mais eficaz, pedagogicamente falando, quando, em 2018, junto ao núcleo dos instrumentos de tortura foi instalada uma televisão com a projeção da obra “Justiça e Barbárie” de Jaime Lauriano. Consistiu em uma das várias intervenções de arte contemporânea no circuito expositivo do MHN, realizadas durante a  7º edição do Prêmio Indústria Nacional Marcantonio Vilaça para as Artes Plásticas. O vídeo, ao mostrar cenas de linchamento de negros em pleno ano de 2017, acompanhadas de reações de leitores extraídas da seção de comentários de jornais digitais brasileiros, coloca em xeque a ideia de que o passado acabou. O passado da violência colonial, também fartamente presente no período da ditadura militar, não passou. Está aí e reatualizado. Segundo o artista “Em comum, imagens e comentários naturalizam a violência perpetrada pela sociedade civil, transformando assassinos em justiceiros. Tal prática atualiza, de forma perversa, o passado colonial e ditatorial brasileiro”.

Infelizmente a obra foi retirada de lá com o fim da Mostra, mas estamos tentando tê-la de volta, cumprindo seu papel educativo, disruptivo.

Afinal, não é para isso que servem os museus? Para nos ajudar a compreender a sociedade na qual vivemos em sua historicidade e complexidade; para que possamos agir no combate à violência, ao racismo e a todas as formas de injustiças e desigualdades?

Para saber mais: http://anaismhn.museus.gov.br/index.php/amhn/article/view/142/93 

Comentário

  1. Gostei bastante, mas o açoite continua e agora não é mais no âmbito privado das senzalas. Vemos nas falas das pessoas, nas fotos que escancaram a desigualdade social. Eu penso que esses objetos de tortura devem estar sincronizados com atos e falas do presente. Talvez assim, se mostre o quanto esse “passado” vive no presente.

    1. Olá Fabiana,
      Obrigada por seus comentários e sugestões tão pertinentes. É justamente para ter essa fala do presente que o MHN, em parceria com a equipe do Rio de Janeiro do projeto ECHOES (http://projectechoes.eu/) – constituída pelas professoras Márcia Chuva, Brenda Coelho, Keila Grinberg e Leila Aguiar – está tentando inserir novamente a obra do Jaime Laurano junto ao núcleo dos instrumentos de tortura. Vamos cruzar os dedos para que consigamos.