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Encontro marcado: memórias com os Maxakali

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por Carina Martins

Croqui de Sofia Carneiro, 2020, inspirado na fotografia de Geralda Soares (1985) e vídeos da internet.

Estranho como a pandemia nos tira da programação. Mês de abril nossa pauta era patrimônio e saberes indígenas e escrevi vários textos mentais sobre o tema. Nenhum deles, claro, chegou ao papel. Assim, optamos por compartilhar nas redes sociais as inúmeras iniciativas do #abrilindígena, felizes por essa profusão de podcasts, livros, filmes e vídeos indígenas.

Já que o cérebro não ajuda a conceitualizar, debater e analisar, impactado pelo inimaginável,decidi recorrer às memórias. Após cinco meses da primeira versão, devastada pelas perdas humanas e pelos incêndios que apagam muitas memórias, diversidade ecológica e saberes na Amazônia e no Pantanal, decido publicá-las.

Escrevo sobre minha primeira ida às aldeias Maxakali, situadas no Nordeste de Minas Gerais. Isso faz mais de duas décadas, então não esperem dados precisos. Eu tinha entre 17 e 18 anos, fazia estágio em um museu de etnoarqueologia americana, coordenado pelo Prof. Franz Hochleitner, à época um professor aposentado da UFJF. Havia ali uma coleção muito interessante dos Maxakali, organizada pela Profa. Neli Nascimento. Uma pesquisadora do museu desenvolvia uma pesquisa de mestrado sobre a cerâmica. Recebi, então, o convite para acompanhá-la na primeira visita de campo e lá fui eu, cheia de curiosidade, alegria, ignorância e vontade de aprender.

Chegar à aldeia do Pradinho foi bem difícil. Viagem longa, ônibus horríveis, caminhada cansativa. Éramos também as estranhas, atraindo muitos olhares por onde passávamos.

Lembro que ao chegar fiquei muito impressionada com as mulheres. Elas usavam vestidos de tecido artesanais coloridos e carregavam muito peso nas costas e na cabeça. Infelizmente, por eu não conhecer a língua, o contato era muito restrito, embora cordial e acolhedor nos gestos.

Os homens, principalmente os professores indígenas e os funcionários da FUNAI, foram meu principal contato para conversar e aprender sobre a cultura Maxakali. Lembro bem do Prof. Zezinho Maxakali e sua paciência em me explicar porque o jogo de futebol empatava, sobre as pinturas corporais, o forró, os casos de bebida e a escola. Era o início da implantação das escolas diferenciadas em Minas Gerais e ele era um professor entusiasmado com as possibilidades. Lembro também, já em outra visita, de ficar encantada com os desenhos das crianças Maxakali e também de conhecer as redações sobre o cotidiano e as brincadeiras infantis.

Acho que o que mais me marcou na primeira visita foram as crianças. Elas falavam comigo por meio dos sorrisos abertos. À época, meu cabelo era enorme, na altura da cintura. Então, meu melhor momento do dia era sentar na varanda do posto e elas virem puxar, pentear e trançar meu cabelo. Era um momento de encontro que não precisava de tradução, análise, leitura. Ali algo muito profundo me conectou às culturas indígenas, que posteriormente construíram meu horizonte teórico e, cada vez mais, minha concepção de vida.

Eu com as crianças na varanda do Posto da FUNAI em Pradinho. Infelizmente, perdi o caderno de campo com todos os nomes. c. 1997.

Foram muitos aprendizados dessa primeira visita. Desfazer estereótipos e projeções românticas, ouvir suas vozes, mesmo que não entendesse a maioria delas. O choque com o poder do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e das igrejas nas aldeias. A importância da FUNAI, a despeito das críticas necessárias. A necessidade de saúde indígena. O impacto das políticas públicas. O autoritarismo da pesquisadora em campo. A percepção do que é necessário. O maravilhamento com a diferença. Os sons do rezo, do forró, das risadas. Os tatus indígenas que até hoje estão na estante principal da minha sala. A percepção muito clara de que a História que aprendia na faculdade não era a que eu queria aprender. A vontade de fazer com eles, que depois germinou na primeira exposição que organizei chamada “BayXeká”. A certeza de que o Brasil não conhece o que nos torna tão singular. O medo da violência doméstica e do álcool. O gosto de ki-suco de morango que me davam ao visitar as casas. A memória do barro de Noeli Maxakali. As 24 fotografias maravilhosas que tirei com minha máquina manual Kodak.

Noeli Maxakali com seus potes cerâmicos recém-elaborados. Fotografia Carina Martins, c. 1997.

 

Saí dessa experiência muito mexida em relação ao relato antropológico. Questões que me incomodaram e só fui encontrar respostas muitos anos depois, sobretudo em James Clifford sobre autoridade partilhada e relatos polifônicos. A pesquisa que silencia, que deturpa, que interpreta a partir de suas projeções e expectativas me causou um misto de estranhamento e repulsa.

Muitos anos mais tarde, fui aluna do pesquisador Thiago Oliveira no Museu Nacional. Ele contava, em uma das aulas, uma oficina que criou com as mulheres Baniwa na reserva técnica do Museu do Índio, momento no qual técnicas, grafismos e texturas foram re-vistos, re-memorados, re-ssignificados. Outra perspectiva sobre patrimônio e memória, na qual os aprendizados coletivos, horizontais e partilhados são o norte para a preservação. Fiquei muito emocionada com esse trabalho.  Coisa bonita de se ver, uma nova geração de pesquisadores com outros olhares e práticas.

A criança brincava de se esconder e tirei esse flagra que captura esse duplo estranhamento cultural de nos vermos tão diferentes e próximas. Fotografia Carina Martins, c. 1997.

Outras experiências com povos indígenas marcaram minha vida, mas essas conto em outro momento. Eu nunca fui a mesma e agradeço a oportunidade de tão cedo ter meu encontro marcado com essa ancestralidade.

Lamento que as mortes de caciques e pajés na pandemia levem consigo tanta sabedoria. Lamento por tantas mortes evitáveis nas aldeias e periferias urbanas. Lamento viver num país que não sabe honrar seus povos nativos. Lamento escutar as barbaridades sobre o patrimônio como “cocô de índio”. Lamento esse projeto de invasão e apropriação de terras indígenas liderado por um governo eleito.

Por esses e outros lamentos, lembrar da visita ao Maxakali e o aprendizado de outra cultura, ainda que com tantos entraves na comunicação, me faz pensar, uma vez mais, na potência dos “futuros olvidados”, ou, em outras palavras, da necessidade de sonhar e partejar um mundo diferente.

Termino com Calle 13 e sua bela canção “Latinoamerica”, que grita o que todos/as deveríamos ter aprendido, senão na vida, ao menos nessa pandemia:

“Tú no puedes comprar al viento

Tú no puedes comprar al sol

Tú no puedes comprar la lluvia

Tú no puedes comprar al calor

Tú no puedes comprar las nubes

Tú no puedes comprar los colores

Tú no puedes comprar mi alegría

Tú no puedes comprar mis dolores”

PARA SABER MAIS Dados sobre os Maxakali:https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Maxakali. Tese Thiago Oliveira: https://www.academia.edu/35424371/TESES_Os_Baniwa_os_artefatos_e_a_cultura_material_no_Alto_Rio_Negro. “Latinoamérica”, Calle 13. https://www.youtube.com/watch?v=jW9_mFAGO0E Acompanhem no Instagram: Rádio Yandê, APIBoficial, Midiaindiaoficial, dentre outros trabalhos sensacionais de comunicação indígena.

 

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