“É ouro… povo preto de Ouro Preto é ouro”
por Aline Montenegro Magalhães e Solange Palazzi
Estamos aqui mais uma vez para falar sobre um patrimônio imaterial da cidade de Ouro Preto, Minas Gerais: o Reinado de Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia e São Benedito, realizado pela Associação dos Amigos do Reinado de Ouro Preto – AMIREI. Já compartilhamos nossos caminhos de pesquisa sobre Maria Cambinda e sua relação com essa festividade da Diáspora Africana na cidade. Agora, ao som de uma toada do Reinado, cantada há um ano, lembramos nossa experiência de participação na Festa de 2020, quando nem imaginávamos que a pandemia gerada pelo Novo Coronavirus não apenas interromperia nossas pesquisas, mas também impediria nosso reencontro no Reinado deste ano que, iniciado no primeiro domingo de janeiro, encerrar-se-á amanhã, dia 10.
Foi perseguindo a trilha da boneca/máscara “Maria Cambinda”, de um instrumento de percussão, o “Caxambu”, de uma coroa e de um cetro de Reinado do Rosário, objetos que compõem a coleção da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Ouro Preto, no Museu Histórico Nacional, desde 1928, que nossos caminhos se encontraram. E foi desse encontro que surgiu o convite para o Reinado, festividade à qual esse acervo está diretamente ligado e que nos ajudaria a compreender seu valor como patrimônio afro-brasileiro.
Ouro Preto tem duas Irmandades do Rosário: a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Ouro Preto, de 1715, no bairro do Rosário; e de Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia, de 1717, no bairro Alto da Cruz, onde se realizam os festejos do Reinado de janeiro. Segundo o livro de Compromisso das duas Irmandades, os negros de Ouro Preto, cativos e libertos realizam festejos com Congados, Reinados Negros, festas, danças e caridade, da Oitava de Natal ao dia de Reis.
A Irmandade do Largo do Rosário trouxe sua festa para o mês de outubro, mas a do Alto da Cruz sempre festejou em primeiro de janeiro. A partir de 2009, com a criação da Associação dos Amigos do Reinado, o protagonismo do Congado e do Moçambique de Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia e o apoio da comunidade, a festa se consolidou e chega ao seu 11º aniversário. Neste ano com atos restritos devido à pandemia do coronavírus.
Não temos palavras para descrever o que foi a experiência vivida em 2020. Assistir ao povo preto de Ouro Preto se apropriar da cidade em uma festa que subverte a realidade presente e homenageia a ancestralidade. Como bem escreveu Hugo Guarilha “os participantes do congado têm a oportunidade de viver em plenitude a relação de communitas, tal como Victor Turner a entende”, abrindo mão de suas individualidades e entregando-se a uma experiência baseada nas relações de igualdade, liberdade, solidariedade e amor.
Às 4h da manhã estávamos em frente à Igreja de Santa Efigênia. A lua ainda estava lá. Parecia aguardar o sol que surgia no horizonte às 5h, iluminando os Congadeiros que se encaminhavam para a igreja, dançando, cantando e batucando. Os sinos tocavam uma toada diferente, lembrando os batuques de tambores africanos, emocionante.
Os ternos de Congo entravam na igreja com seus estandartes, seus tambores e cânticos. Que energia!
À medida que o sol ia avançando, chegavam grupos de todas as partes de Minas, para “Reinar” com os Congados de Ouro Preto. Por volta de 10h, um cortejo de mais 30 grupos se dirigiu à antiga “Mina de Chico Rei”, em reverência à memória deste ancestral, que foi responsável, dentre outros atos, pelo reconhecimento dos congados e pela difusão do Reinado (Negro) do Rosário por todo o Brasil. Alí os aguarda parte do “Trono Coroado de Ouro Preto”. Reis e Rainhas dos Congados e das Irmandades aguardam o grande cortejo que os conduzirá a Festa.
Subindo e descendo ladeiras, como eles disseram, “no pico do meio-dia”, os Congados passaram na frente da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia, onde estavam colocados os andores de Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia e São Benedito, os abençoando, assim como a água benta e refrescante distribuída pelo Pároco Luiz Carlos.
Apesar das ladeiras e do calor não se vê cansaço, mas partilha festiva de rostos, som, danças, cantos, cores, gestos, celebrações, porque o povo negro sobreviveu à escravidão, resistiu e resiste a todo o racismo, preconceito, discriminação. O Reinado é uma festa de clamor e louvor, da ancestralidade de África aos nossos dias. Tudo isso passando a nossa frente, em três horas de cortejo. Velhos e crianças, mães, filhas e avós, Capitães, Reis, Rainhas de Congo, de Moçambique, de Marujo, de Catopê, de Caboclo, das Irmandades… Impossível descrever em palavras a grandiosidade de um “Reinado do Rosário”.
Em seguida paramos para o almoço. Uma pausa que também é uma grande partilha de alimentos, saudades, sonhos, conhecimentos, história, ancestralidade e perspectiva de futuro.
O ponto alto deste dia tão especial foi a Missa campal com os Congados no adro da Capela do Padre Faria, uma cerimônia que concentra na Fé em Nossa Senhora do Rosário todo este movimento Reinadeiro.
Foi nessa missa que celebramos a descoberta, pela Capitã de Congado e Presidenta da AMIREI, Kátia Silvério, da bandeira de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos confeccionada em ferro batido. Segundo especialistas, produzida no final do século XVIII, por negros oriundos de Benin, Gana e Burkina Faso. Uma peça do Sagrado Ancestral, construída nesta comunidade, referência de história, memória e identidade de ontem e de hoje.
Trazida de forma imponente pelos Capitães do Congado e do Moçambique de Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia foi saudada por todos os congadeiros presentes, que nesta terra, se sentindo também filhos de Chico Rei, entoaram a música do Reinado, cujo refrão ainda ecoa na cabeça e no coração:
É ouro, é ouro, povo preto de Ouro Preto é ouro; É ouro, é ouro, povo preto de Ouro Preto é ouro…
A AMIREI realiza o Reinado de 2021, com a maior parte das atividades de forma virtual. Poucas, apenas quatro cerimônias em grupo: a Benção de Abertura do Reinado, que ocorreu no dia 03 de Janeiro, o Tríduo em honra a Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia e São Benedito e a Missa do Reinado que será neste domingo dia 10, às 15h, como no ano passado, mas com participação possível apenas pelas redes sociais.
Neste ano, os tambores seguem os preceitos que este tempo exige: vão tocar com pouca gente, sempre utilizando máscaras e fazendo higienização com álcool, na solidão da ausência dos visitantes, mas na força da “Fé que Canta e Dança, e Resiste”.
No nosso coração, a vontade de voltar a participar de tudo isso novamente, e aquela musiquinha…
É ouro, é ouro, povo preto de Ouro Preto é ouro; É ouro, é ouro, povo preto de Ouro Preto é ouro…
Para saber mais:
Guarilha, Hugo Xavier. Vestígios de Patrimônio. Vivência e representação do Reinado de Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia na comunidade do Alto da Cruz, em Ouro Preto (Tese de Doutorado em Museologia e Patrimônio), Rio de Janeiro, PPGP-MUS, Unirio-Mast, 2015.
______. A fé que canta e dança – Reinado de 2012. Disponível em: https://vimeo.com/42555266
Sobre a Bandeira Históricas veja:
https://www.facebook.com/watch/?v=455278422015677
Programa da Festa do Reinado 2020
https://turismo.ouropreto.mg.gov.br/evento/36
“Povo Preto de Ouro Preto é Ouro”, conheça a Canção
https://www.youtube.com/watch?v=EIrX1s6ZBus
Conheça a programação do Reinado 2021
https://www.youtube.com/results?search_query=Amigos+do+Reinado
https://www.instagram.com/mocambiqueop/
https://www.facebook.com/mocambiquesantaefigeniaop
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Excelente!
É isso aí! Obrigada pela leitura e pelo retorno. Forte abraço!!!!