Praça XV e a história negra do Rio de Janeiro
por Bruno Barcellos e Raphael Morgado
A Praça XV, no Rio de Janeiro, é local de muita movimentação e passagem no coração do Centro da cidade. Na pressa do dia a dia, muitos não devem reparar na paisagem que os cercam, mas ao sentar-se num dos bancos na praça, logo repararão na importância histórica do lugar.
Da estação do VLT, deparamo-nos com o que restou de um importante chafariz do século XVIII. Assim como o Paço Imperial e o Arco do Teles. Do outro lado da Primeiro de Março, encontramos o Convento do Carmo. Na mesma rua nos chamam atenção as igrejas barrocas de Nossa Senhora do Carmo e da Ordem Terceira do Carmo. Em conjunto com os prédios atuais, percebemos as múltiplas camadas de temporalidades que se sobrepõem na praça.
O povoamento da Praça XV remonta ao século XVI, quando a cidade se expandiu para a área entre os morros do Castelo e S. Bento, que segundo Cavalcanti¹, o aterramento aconteceu ao longo de 200 anos. Ao longo do século XVII, com a construção do porto, a cidade se inseriu num sistema comercial que ligava Buenos Aires, RJ e Luanda por onde circulava o contrabando entre as Américas espanhola e portuguesa. Isto se aprofunda no XVIII com a produção aurífera em MG. O RJ virou o maior porto de entrada de africanos da América².
A riqueza derivada do comércio proporcionou melhoramentos para a cidade. Ela se tornou o centro econômico e político colonial. Com a transferência da sede colonial para o RJ em 1763 o porto passou por transformações segundo o ideal urbanístico iluminista. O atual Paço Imperial foi inicialmente a residência dos governadores da capitania (1743), se tornou residência dos vice-reis, da Família Real e o local de trabalho dos imperadores do Brasil. Foram instalados o cais do porto e o chafariz (1747 e reformado em 1789 por Mestre Valentim). Em 1789 foi construída a casa dos Teles de Menezes, importante família de comerciantes, foi feito o calçamento e construíram outras casas para harmonizar esteticamente o lugar³.
Nessa área estava presente o poder religioso, com a igreja que se tornou Sé após 1808 e a de uma ordem terceira de elite. Deve-se lembrar que a escravidão, fonte da riqueza que proporcionou tudo isso, também estava lá. Além de ser o maior ponto de entrada de africanos, o mercado de escravos do RJ estava ali perto, na rua Direita (atual Primeiro de Março) perto da Alfândega?.
Voltando ao presente, os prédios relacionados ao poder tiveram preferência na política de preservação patrimonial. Numa breve pesquisa no site do Iphan?, vemos que foram tombados a Igreja de N. Sra. do Carmo, o chafariz, a praça, o Arco do Teles, o Convento do Carmo e o Paço Imperial. Entende-se que a política patrimonial, empreendida pelo Estado, revela a memória e a narrativa oficiais construídas para um determinado lugar. Na Praça XV, elas evocam o Estado, a Igreja, e exaltam a colonização.
Onde está a escravidão? Por ali milhões de pessoas entraram na América e foram vendidas para trabalhar nas lavouras e cidades das diversas regiões do Brasil. Porém, nada, no local, parece remeter a isto. Pode-se observar a presença dessa narrativa na região do Valongo e Pequena África onde, em 2016, foi descoberto o cais que serviu de entrada dos escravizados após a transferência do porto e do mercado para lá, em 1769?. Na região construiu-se a cultura negra carioca. Em meados do século XIX, a região portuária possuía terreiros, associações dançantes de negros e, durante o século XX, lá surgiram as bases do samba e do carnaval contemporâneo.
A região foi alvo de lutas desde a descoberta do cais. Acompanhando muitos conflitos, ele foi tombado como patrimônio pelo Inepac e como patrimônio da humanidade pela Unesco. Ainda assim, há disputas na região. Setores do movimento negro e defensores da memória negra da região se queixam da precária preservação do sítio arqueológico e o Instituto Pretos Novos está em dificuldade financeira e o projeto de um Museu da Escravidão e da Liberdade nunca saiu do papel. Ao lado da instituição que constrói uma narrativa museológica negra e da escravidão, estão locais com valor histórico pouco conhecidos e preservados: a Casa de Tia Ciata, o Jardim Suspenso do Valongo e a Praça dos Estivadores (onde funcionou o mercado de escravos).
Mesmo com a tentativa de proibir a roda de samba da Pedra do Sal e do veto a um projeto de transformação do quilombo que lá existe em bem imaterial, ela continua acontecendo. Já as pinturas e pichações no local, remetem à presença negra na região. Nota-se como a disputa pela cidade, pela expressão cultural nos aparelhos urbanos e pela proteção patrimonial é forte e, através disto, a memória negra se mantém presente.
Se o Valongo tem importância na história da escravidão e da cultura negra, a Praça XV também tem. Conforme Ynaê dos Santos?, o RJ era uma cidade escravista, logo, a história negra e da escravidão está em todos os locais do centro histórico. A autora aponta que os negros foram os construtores da cidade, implementando e fazendo a manutenção dos melhoramentos citados anteriormente. A seu turno, os chafarizes da cidade, tal qual o que atualmente está na praça, eram pontos de sociabilidade negra, já que lá os escravizados se reuniam para coletar água e trabalhar.
Retornando à praça, podemos, se olharmos de forma diferente as construções lá tombadas, contrapor a narrativa estatal que apaga a história escravista. Podemos tomar a própria praça como um resultado da exploração do trabalho forçado negro, já que foi construída assim. Além disso, pontos específicos nos ajudam a contar a narrativa que estamos criando, sejam físicos, como o chafariz, ou resultado de uma imaginação histórica, como o antigo mercado da rua Direita. Em conjunto com a Pequena África, este olhar sobre a Praça XV renova o nosso conhecimento sobre a escravidão no RJ e mostra como esta história é muito anterior ao século XIX.
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¹CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
²BICALHO, M. F. O Rio de Janeiro no século XVIII: a transferência da capital e a construção do território centro-sul da América portuguesa. URBANA: Revista Eletrônica do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade, Campinas, v. 1, n. 1, p. 1-20, 3 abr. 2013. Disponível em: <http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/urbana/article/view/8635108> Acesso em: 24 nov 2019.
³MICELLI, Bruna. O Desenvolvimento do Espaço Urbano do Rio de Janeiro: principais observações a partir do paço da cidade. Geo UERJ, Rio de Janeiro, n 28, p. 332-352, 2016. Disponível em: < https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/geouerj/article/view/14606> Acesso em 24 nov 2019.
?NARA JÚNIOR, João Carlos. Arqueologia da persuasão: estudo arqueológico da primeira igreja rococó da América:. 2016. 220 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Arqueologia, Museu Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro, 2016, p. 55.
?http://portal.iphan.gov.br/ans/ Acesso: 22 de agosto de 2020.
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?SANTOS, Ynaê Lopes dos. Irmãs do Atlântico. Escravidão e espaço urbano no Rio de Janeiro e Havana (1763-1844). 2012. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. doi:10.11606/T.8.2012.de-08012013-121005. Acesso em: 2020-08-22.
Referências bibliográficas:
AGUIAR, Matheus e ALMEIDA, Elisângela. Pequena África: lugar contra a escravidão no porto. Jornal da PUC, 2017. Disponível em: <http://jornaldapuc.vrc.puc-rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=5334&sid=24> Acesso em: 22 de agosto de 2020.
BICALHO, M. F. O Rio de Janeiro no século XVIII: a transferência da capital e a construção do território centro-sul da América portuguesa. URBANA: Revista Eletrônica do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade, Campinas, v. 1, n. 1, p. 1-20, 3 abr. 2013. Disponível em: <http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/urbana/article/view/8635108> Acesso em: 24 nov 2019.
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SANTOS, Ynaê Lopes dos. Irmãs do Atlântico. Escravidão e espaço urbano no Rio de Janeiro e Havana (1763-1844). 2012. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. doi:10.11606/T.8.2012.de-08012013-121005. Acesso em: 2020-08-22.
VALPORTO, Oscar. #RioéRua: memória e história maltratadas na Pequena. #Colabora. 2018. Disponível em: <https://projetocolabora.com.br/ods1/memoria-e-historia-maltratadas-na-pequena-africa/> Acesso em 22 de agosto de 2020.
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