O Semeador de Histórias
por Carlize Schneider¹
O processo de ocupação de Lucas do Rio Verde, município localizado no norte do Mato Grosso, aconteceu durante o chamado “milagre econômico” e numa perspectiva desenvolvimentista de interiorização do país, na ditadura militar. O “milagre econômico” entendido como promoção do mercado interno, através da agricultura e da exportação de produtos manufaturados.
Conforme o historiador Marcos Napolitano “a ambiguidade traduz involuntariamente as contradições da economia brasileira, esfera que o regime bradou seus feitos” (NAPOLITANO, 2014, p.134). De um lado o crescimento econômico com o uso de capital estrangeiro, por outro o aumento das desigualdades sociais.
Sobre a ocupação da cidade neste momento, destaco que
A gleba Lucas do Rio Verde, localizada às margens da BR 163, foi criada judicialmente em 1976 pela coordenadoria do INCRA. Em 1981, 0 presidente general João Batista Figueiredo declarou a área como prioritária para fins de reforma agrária através dos decretos n° 86.306 e 86.307 O projeto de assentamento especial Lucas do Rio Verde foi implantado em regime de urgência para atender àqueles agricultores sem-terra que estavam acampados na Encruzilhada Natalino”, em Ronda Alta, palco de intensos conflitos por terra no Rio Grande do Sul (DENTZ, 2018, p.24 apud ROCHA, 2010, p. 02).
O II Plano Nacional de Desenvolvimento foi efetivo, se não levarmos em consideração os impactos sociais. O plano
[…] buscou enfrentar a crise internacional da época sem levar o país à recessão, definindo uma série de investimentos em setores-chave da economia. Combinava ação do Estado, da iniciativa privada e do capital externo. Sua execução foi seriamente comprometida pelo aprofundamento da contração internacional. Mesmo assim, foi capaz de dotar o Brasil de uma cadeia produtiva completa, algo inédito na periferia (Maringoni, 2016, p. 43).
“As ações desenvolvidas por políticas públicas lideradas por governos federais e estaduais, facilitam terras aos latifundiários, no mercado de capital, as empresas agropecuárias e colonizadoras nacionais ou aliadas ao capital estrangeiro” (DENTZ, 2018, p.14). A presença feminina, por exemplo, durante a ocupação de Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso, permanece com muitos silêncios, apagamentos e lacunas historiográficas.
As narrativas e representações dos colonizadores, dos pioneiros compõem os discursos oficiais sobre a formação e constituição da cidade. Destaco as representações presentes ao longo do perímetro urbano da cidade, através um conjunto de monumentos que correspondem a símbolos da cidade: uma ema, um porco, uma galinha e o semeador.
A ema representa o crescimento e desenvolvimento acelerado da cidade desde a chegada das primeiras famílias de migrantes; o porco Luquinhas, como ficou conhecido, representa a o cultivo de milho e a suinocultura; já a galinha representa o crescimento da agroindústria com a vinda de multinacionais do setor de alimentos para a cidade.
O semeador que ficou conhecido popularmente como pé grande, homenageia os agricultores e remete a grande produção de grão da cidade. Temos o ideário do semeador, aquele que, por seu esforço, tem mantido o crescimento do interior brasileiro. De acordo com o Plano Diretor do município
O semeador é como uma planta forte, com bons frutos. É um multiplicador de sonhos e esperança, alguém que constrói pensando nas próximas gerações […] O monumento foi inspirado no Evangelho de Mateus, que define semeador como aquele, que além de trazer e cuidar da boa semente, sabe preparar o terreno, superar adversidades para que ela germine, se desenvolva e produza o resultado ou os frutos almejados. (LUCAS DO RIO VERDE, 2011, p. 01)
O semeador conta que histórias sobre os primeiros habitantes de Lucas do Rio Verde? Que aspectos desta narrativa ele, também, por vezes silencia? Que grupos são representados?
Compõem os lugares de memória, que exaltam as características agroexportadoras, da cidade. A memória como um campo de constantes disputas que buscam manter e/ou ampliar a representatividade dos grupos sociais. Assim, “a construção da modernidade pretendida pelos discursos governistas não deve excluir a memória plural de seus habitantes” (ORIÁ, 2004, p.143).
A temática de memória e patrimônio histórico é recente na historiografia brasileira. O conceito de patrimônio esteve relacionado ao “patrimônio edificado”, os bens arquitetônicos e monumentais, sob o cuidado dos arquitetos. A Legislação Patrimonial, aparece no contexto do Estado Novo.
O Estado Novo (1937-1945) caracteriza-se pelo regime ditatorial de Getúlio Vargas, onde provocado pelas ações e investidas subversivas do movimento comunista brasileiro decreta a Lei de Segurança Nacional que torna o movimento comunista ilegal e com isso, legitima sua permanência no poder. No período são construídas as bases políticas e econômicas do país, visando a construção de uma nação. O governo se fortalece através de medidas educacionais, sociais e culturais.
O Decreto-Lei nº 25/37², estabelece em seu artigo 1º a “vinculação a fatos memoráveis da História do Brasil, quer por seu excepcional valor arquitetônico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”. Ampliando o conceito de patrimônio, através das dimensões natural, artística ou documental. Os historiadores como produtores de narrativas que, também, fabricam o patrimônio e mobilizam os homens e mulheres para a ação.
Os bens culturais como um conceito em constante e permanente transformação, que corresponde a
[…] toda produção humana, de ordem emocional, intelectual e material, independentemente de sua origem, época ou aspecto formal, bem como a natureza, que propicie o conhecimento e a consciência do homem sobre si mesmo e sobre o mundo que o rodeia (GODOY apud ORIÁ, 2002, p. 132).
A importância de uma educação patrimonial que garanta a promoção do direito à memória e do sentimento de pertencimento, a partir de ações educativas que mobilizem alunos, comunidade escolar e a sociedade.
“Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens” (LE GOFF, 2003, p. 471). Nesse sentido, a Educação Patrimonial se constituí como uma prática contínua nas escolas, em especial nas aulas de História, promovendo uma nova identidade cultural, onde a diversidade e pluralidade de narrativas sejam efetivas. A memória e o patrimônio histórico como caminho para a consciência histórica, a cidadania e a democracia.
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¹Historiadora e Professora de História da Rede Privada de Ensino de Lucas do Rio Verde, Mato Grosso, desde 2015. ²</span style=”font-weight: 400; font-size: 8pt;”>Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937.</span style=”font-weight: 400; font-size: 8pt;”>https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-25-30-novembro-1937-351814-norma-pe.htmlAcesso, setembro de 2020.
Referências:
BRASIL. Do Patrimônio Histórico e Artístico Cultural, Decreto – lei n° 25 de 30 de Novembro de 1937, Artigo 180. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0025.htm
DENTZ, Edson Von.
LE GOFF, J. História e Memória. Paris: Gallimard, 1988. (Coll. Folio).
MARINGONI, Gilberto. A maior e mais ousada iniciativa do nacional-desenvolvimentismo. Revista Desafios do Desenvolvimento, São Paulo. 2016, Ano 13, nº 88.
NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Editora Contexto, 2014.
ORIÁ, Ricardo. Memória e Ensino de História. (Org). BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Unesp, 2004.
PND – Plano Diretor do Município de Lucas do Rio Verde – MT, 2007. Disponível em http://www.lucasdorioverde.mt.gov.br/portal/plano_diretor/plano_diretor.php Acesso em setembro de 2020.
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