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O que as panelas de barro têm a ver com o patrimônio cultural brasileiro?

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por Camila Biondi¹

A partir desta pergunta, proponho que pensemos um pouco sobre o que são os “bens culturais” e quais os seus impactos no dia a dia da comunidade onde estão inseridos e como se relacionam. A busca por identificar o que é um bem cultural pode surpreender pela extensa quantidade de artigos, dissertações e teses que afinam suas pesquisas acerca das políticas públicas no âmbito do patrimônio cultural com alguns dados históricos que narram as alterações pelas quais o termo “bem cultural” passou ao longo dos anos.

Em linhas gerais, com o avanço da reflexão sobre a Cultura, a representatividade destes bens passou a ser um aspecto importante para consolidar seu tombo e registro. Um bem cultural, como se entende hoje, pode ser classificado de acordo a sua natureza material ou imaterial. Os bens materiais podem ser imóveis, como os sítios arqueológicos e paisagísticos, cidades históricas e bens individuais; ou móveis: coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos. Quanto ao bem imaterial são todos aqueles que se reportam às práticas e domínios da vida social refletidos em saberes, ofícios e modos de fazer, celebrações, formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e se estende também aos lugares, como os mercados, feiras e santuários que associam práticas culturais coletivas (dados disponíveis no site do IPHAN: www.portal.iphan.gov.br).

Contudo, não pretendo me ater à uma retrospectiva histórica, mas destacar um pensamento acerca da dinâmica que se estabelece entre pessoas e seus bens culturais. O que se busca aqui é propor uma reflexão sobre bens culturais que são, em sua grande maioria, a fonte de renda e sustento da sua comunidade, a tradição que cria e mantém um elo de identidade cultural e memória coletiva. Por isso, trago o caso de registro do Ofício das Paneleiras de Goiabeiras Velha, em Vitória/ES.

Ofício das Paneleiras de Goiabeiras.
Fonte: www.portal.iphan.gov.br / Foto: Márcio Vianna
 

A Associação das Paneleiras de Goiabeiras – APG e a Tradição do seu Ofício Berenícia Correa, presidente da Associação das Paneleiras de Goiabeiras – APG , fala um pouco, em entrevista ao documentário feito pelo IPHAN², sobre a criação da associação das paneleiras. Ela conta que a associação possibilitou uma organização administrativa do grupo e, principalmente, um espaço físico, o galpão, onde hoje recebem turistas cotidianamente. Algumas paneleiras continuam exercendo seu ofício em suas casas, como é o caso da paneleira Alceli Maria Rodrigues: “Eu sou paneleira de fundo de quintal, pertenço à associação, mas fico aqui em casa. (…) Eles pensam que quem trabalha em casa não é associado, não é paneleiro. Tem pessoas que acham isso, mas a gente é a mesma coisa. É a mesma cultura…Todo mundo, tem um bocado de gente ainda trabalhando em casa.”

As paneleiras utilizam de uma modelagem manual, sem torno e forno no seu processo de confecção das panelas e posterior queima, seguida da aplicação de tintura de tanino³. O trabalho manual desempenhado com muita agilidade e dedicação assume um compromisso simbólico com a sua técnica ancestral indígena. Sobre isso, a paneleira Gecilene Correa coloca que não concorda com o uso do forno: “Pelo forno? Ah, eu não concordo. Porque aí já quebra a nossa tradição. Então, a nossa tradição é essa, veio desde os índios e eu acho que tem que ser assim. Não tem nenhuma mudança.”, conclui.

A herança das paneleiras contribui para a criação de uma identidade capixaba – e nacional – que se mantém ao longo das gerações. É importante compreender que todo o processo de registro, tombo e manutenção de bens que se tornam patrimônios culturais implica diretamente no comprometimento dos poderes públicos em conjunto com a mobilização da sociedade. Pode-se considerar, desta maneira, que tais processos são também caracterizados por disputas de poder e constante reivindicação social. De acordo com o dossiê técnico disponível no site do IPHAN, após instituídos o Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC e o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, pelo Decreto n 3.551, em agosto de 2000, a 6a sub-regional do IPHAN inicia o levantamento e sistematização de dados sobre as paneleiras com o intuito de abertura do processo de registro. Este registro foi um dos projetos-piloto do IPHAN que inaugurou o Livro de Registro de Saberes e o instrumento legal de reconhecimento e preservação dos bens culturais de natureza imaterial, criado em agosto de 2000 (dossiê IPHAN, pag. 11). Aberto em 26/03/2001, o processo de registro teve suas informações sistematizadas por meio do INRC?, aplicado sob a supervisão do atual Departamento do Patrimônio Imaterial– DPI.

Produção artesanal de panela de barro, no bairro de Goiabeiras Velhas (Vitória/ES).
Fonte: www.portal.iphan.gov.br / Foto: Márcio Vianna.
 

A inscrição do Ofício das Paneleiras de Goiabeiras foi feita em 20/12/2002, no livro de Registro dos Saberes. O trabalho do IPHAN em relação à salvaguarda deste patrimônio cultural imaterial se constitui no acompanhamento dos processos e atividades tradicionais das paneleiras, além de supervisionar possíveis “ocorrências de intervenções nas condições de produção, comercialização e promoção das panelas de barro”. (ABREU, 2006) Atrelado à isto, há uma identificação dos elementos que são a base da produção das panelas de barro, como, por exemplo, a preservação das fontes de matérias-primas (manguezal, fonte de tanino, e o barreiro, no Vale do Mulembá), as condições de infraestrutura para as atividades de confecção e comercialização, o reconhecimento das artesãs e auxiliares em relação aos seus direitos previdenciários, além da problemática crescente de urbanização da área e apelo turístico das panelas.

De acordo com Araújo (2018), o Ofício das Paneleiras de Goiabeiras Velha existe e se mantém há mais de 400 anos. Trata-se de uma tradição cultural secular, que se reestrutura com o passar do tempo, de maneira que possa continuar existindo. Esta breve análise busca trazer alguns dados históricos importantes, mas sobretudo reafirmar que os diálogos no campo do patrimônio histórico e cultural são espaços em que se pleiteia direitos e reconhecimento de bens culturais e, portanto, estão em constante atualização e debate.

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¹Ceramista; Artesã. Bacharel em Comunicação Social – PUC Minas; especialista em História da Arte e Curadoria – PUC PR. Mediadora de educação para patrimônio – Fundação Demócrito Rocha. ²Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. ³Pigmentação proveniente de cascas do mangue vermelho. ?Inventário Nacional de Referências Culturais.

 

Referências:

ARAÚJO, Gabriella. Tradição Secular – As Paneleiras de Goiabeiras: Cultura Imaterial e Representação Social do Estado do Espírito Santo, 2018. Disponível em <https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/21646/2/Gabriella%20Vasconcellos%20de%20Ara%c3%bajo.pdf> Acesso em agosto de 2020.

ABREU, Carol. Dossiê Técnico. (Ofício das Paneleiras de Goiabeiras), IPHAN. 2006. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/PatImDos_PaneleirasGoiabeiras_m.pdf > Acesso em agosto de 2020.

Youtube. Ofício das Paneleiras em Goiabeiras, canal IPHAN. 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ZAVid8v7mF4> Acesso em agosto de 2020.

 
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