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Avenida Barão de Tefé, 75 – Impasses na materialização da memória negra da região portuária

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por Luz Stella Rodríguez Cáceres

Galpão sede da ONG Ação da Cidadania.
Fonte: www.oglobo.com

Em maio de 2012 arqueólogos encontraram o que seria a pedra fundamental do Armazém das Docas Dom Pedro II. Lavrada em 15 de setembro de 1871, ela mede um pouco mais de um metro e pesa cerca de duas toneladas. O bloco de granito enterrado na esquina das ruas Barão de Tefé e Sacadura Cabral é um registro histórico de uma época em que o porto era muito importante para a cidade do Rio de Janeiro. Ele foi colocado ali na inauguração da obra das docas, quando foi feito o último aterro que cobriu a praça. No mesmo ponto foi achada uma cápsula do tempo, uma caixa de madeira revestida de chumbo que continha um exemplar do Diário Oficial, de agosto de 1871, e dos jornais A Reforma, Diário do Império e Jornal do Comércio, todos de setembro do mesmo ano. Toda cápsula do tempo é feita com a intenção de guardar um legado para a posteridade e assim deixar uma referência da construção.

Appadurai (1987) argumenta que os objetos podem ser vistos como atores sociais, a partir deles podemos analisar um certo contexto social, e explorar os valores que eles põem em jogo, ao provocar discussões e movimentos que influenciam situações de formas imprevisíveis, provocando transformações inéditas. É sobre essa ótica que podemos compreender o impacto do encontro da pedra fundamental do Armazém das Docas. O desenterro arqueológico da pedra fundamental do que fora o primeiro prédio construído pela Companhia Docas do Rio de Janeiro em 1870, para armazenar os grãos trazidos pelos navios que atracavam no porto, marca o exato momento no qual a edificação localizada na Avenida Barão de Tefé, 75 se tornou o centro de disputas que vieram florescer no contexto do tombamento do Cais do Valongo como Patrimônio Mundial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).  

A obra feita pelo engenheiro negro André Rebouças, que à época era diretor de obras da Alfândega e que não permitiu que fosse usada mão de obra de escravos na empreitada teve, a partir de 2012, sua biografia narrada sob uma perspectiva afrocentrada, contribuindo com os debates em torno da memória negra, por tanto tempo soterrada na região portuária carioca e que foi se materializando a partir dos distintos achados arqueológicos. 

Com seu tombamento efetuado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2016, o Armazém das Docas recobrou a sua singularidade. No dossiê de tombamento, destaca-se que os projetos para as Docas Dom Pedro II foram influenciados por então recentes métodos construtivos europeus, que englobavam o que havia de mais avançado em termos de tecnologia portuária, incluindo o sistema construtivo do cais e armazém, bem como sua logística. O tombamento do Armazém das Docas serviu para sustentar e argumentar o dossiê apresentado para a candidatura do Cais do Valongo como Patrimônio Mundial da Humanidade ante a Unesco. 

Porém a biografia do prédio está longe de ser uma história linear. Entre a sua projeção, construção e tombamento, o Armazém das Docas passou por vários usos e uma longa lista de usufruidores. Parte da sua estrutura foi destruída e alterada. O prédio já foi incendiado, abandonado, remodelado e restaurado, a tal ponto, que muito pouco resta do que fora construído originalmente; tal e como foi levantado na pesquisa de Débora Rios (2020). 

De fato, o tombamento do Armazém das Docas aconteceu 12 anos depois da remodelação estrutural efetuada pela Organização Não Governamental (ONG) Ação da Cidadania em 2004. Mais do que a preservação do bem material, o tombamento direcionou-se à valorização da matriz africana em nossa sociedade. A proposta de tombamento se respaldou nos valores históricos atribuídos ao edifício como um dos últimos testemunhos da obra do engenheiro André Rebouças. O tombamento também registra um importante capítulo da evolução da técnica de construção e modernização da operação portuária no Rio de Janeiro.

Centro Cultural Ação da Cidadania, Centro do Rio de Janeiro.
Fonte: www.guiaculturalcentrodorio.com.br
 

Popularmente conhecido como Galpão da Cidadania, o prédio é de usufruto do Ministério Público Federal, mas foi cedido à ONG através de acordo envolvendo a própria União em 2000 com o apoio incondicional de Ruth Cardoso. Desde então, a ONG investiu na recuperação e preservação da construção sem receber jamais uma contrapartida da União. Deste modo, a história do prédio não poderia ser contada sem considerar também a presença da Ação da Cidadania que tem por sede o galpão há 20 anos. Fundada pelo sociólogo e ativista de direitos humanos Herbert de Souza, conhecido como Betinho, a ONG é referência central para os movimentos sociais brasileiros pelo seu importante programa de combate à fome. 

A partir do interesse pela recuperação do espaço para materializar um museu ou um centro de interpretação que funcione como espaço de acolhimento e recepção de turistas e visitantes, com informações sobre patrimônio e turismo, adjunto ao Cais do Valongo, a ONG passou a ser vista por alguns autores como antagonista e foi acusada de ter se desvirtuado do seu papel inicial. É verdade que com o intuito de obter recursos, a ONG alugou o espaço para a realização de eventos, e na visão de alguns, os mesmos contribuíram para a deterioração do Cais do Valongo. Foi dito que as festas promoveriam o desrespeito ao simbolismo emanado pelo sítio arqueológico que teria como função evocar o tema da escravidão, uma das maiores tragédias que se abateram sobre a humanidade, e que os frequentadores das festas jogavam latas de cerveja e urinavam no espaço (VASSALLO; RODRÍGUEZ, 2019). 

A seu favor, os administradores do galpão têm argumentado, em entrevista, que no dossiê apresentado à Unesco teria sido omitida a existência e trabalho da ONG dentro do prédio, do qual se destaca sua origem, mas não sua progressiva descaracterização. De fato, o local estava tão degradado quando o receberam, que de início tiveram que trabalhar dentro de contêineres como consequência do grau de deterioração do prédio. Sobre as festas, que de fato aconteceram eventualmente, haveria um julgamento moral, elas foram formas de arrecadar recursos e não teriam sido um desvio da missão, pois por um período concreto a fome tinha deixado de ser um tema tão central no país. Dado que na era do Partido dos Trabalhadores (PT) esse assunto tinha sido resolvido de forma institucional a partir de uma política pública, a ONG direcionou esforços para fortalecer outras estratégias sociais. 

Frente à deterioração haveria uma série de condutas que são de responsabilidade permanente da prefeitura e que têm sido muito mais nocivas para a preservação das ruínas do cais. De acordo com os critérios determinados pelo dossiê de candidatura do cais, e em consonância com a Unesco, o Iphan é o órgão responsável pela sua manutenção. Cabe a ele fiscalizar o bem tombado e implementar políticas gerais. Já a prefeitura, nesse mesmo termo de compromisso, assinado na gestão de Marcelo Crivella, seria responsável pela segurança, manutenção, fiscalização, sinalização, iluminação, acolhimento dos turistas e visitantes, mas até o presente momento só se percebem os sintomas da falta do cuidado da prefeitura com o bem tombado. Não há iluminação noturna e nem acolhimento específico aos turistas. O local se tornou ponto de moradores de rua e usuários de crack que ali mesmo evacuam e jogam lixo (VASSALLO; RODRÍGUEZ, 2019). Muito mais que a presença da ONG e suas eventuais festas é a ausência da esfera pública que tem contribuído com a deterioração das ruínas do Valongo. 

A história de tensões e negociações entre a Ação da Cidadania e os responsáveis pela edificação de um centro de memória sobre a escravidão, em atual processo de pesquisa, é longa para ser contada em poucas linhas, mas vale a pena dizer que a ONG reconhece o valor que o prédio tem para a comunidade afrodescendente, enquanto símbolo de luta pela equidade de direitos e oportunidades dessa parcela da população brasileira. A Ação da Cidadania sempre teve um tom conciliador e tem demonstrado disposição para sair do espaço e ir para outro Galpão onde possa continuar com sua missão, muito mais necessária nos últimos tempos. 

A fome voltou no Brasil, e em tempos de pandemia a Ação da Cidadania tem intensificado sua atuação de distribuição de alimentos para as famílias atingidas pelas consequências econômicas da grave crise de saúde. Pode-se pensar que o fato do local estar sendo usado para essa função contribui na preservação da edificação, pois num contexto político dramaticamente marcado pela crise do setor cultural, o desmonte das funções do Iphan e o negacionismo da escravidão que ventilam sem pudor membros do governo de Jair Bolsonaro, o prédio estaria simplesmente abandonado e entregue a sua sorte. Só conferir como exemplo, o atual estado de esvaziamento do projeto do Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira (Muhcab), localizado no antigo Centro Cultural Municipal José Bonifácio. O futuro do Centro de Interpretação do Cais do Valongo que será dedicado à herança africana é mais que incerto dado que sua gestão depende da Fundação Palmares, atualmente dirigida por Sérgio Camargo, quem nega que a escravidão tenha sido ruim para os negros, e sem rubor tem declarado que pelo contrário, ela trouxe até vantagens. 

O plano inicial era que no Armazém das Docas também viesse a funcionar o Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana (Laau), centro de referência ligado ao Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH), da prefeitura do Rio de Janeiro. Esse laboratório abriga cerca de 1,5 milhão de artefatos encontrados durante as escavações do Cais do Valongo. Artefatos, pedras e prédios têm funcionado na reafirmação da presença negra escravizada na região portuária. Os objetos parecem prontos para nos contar em detalhes uma história que luta para não ser apagada, mas os objetos não falam por si, políticas da memória são necessárias para que as vozes dos materiais sejam ouvidas. 

 

Referências:

APPADURAI, Arjun. Commodities and the politics of value. In: APPADURAI, Arjun (Ed.). The social life of things. Londres: Cambridge U.P., 1986.

RIOS, Débora. As antigas Docas de D. Pedro II: trajetória, patrimonialização e desdobramentos. 2020. 205 f. Dissertação (Mestrado em Memória Social) –Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.

VASSALLO, Simone PondéRODRIGUEZ CACERES, Luz Stella. Conflicts, truths and politics at the Slavery and Freedom Museum in Rio de Janeiro. Horiz. antropol., 2019, v. 25, n. 53, p. 47-80.  Epub. ISSN: 1806-9983.  Disponível em: <https://doi.org/10.1590/s0104-71832019000100003>. Acesso em: 20/08/2020.

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