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Bay Xeká: memórias de uma exposição polifônica

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por Carina Martins

 

Em outubro de 1998, foi inaugurada a exposição “Bay Xeká: os índios Maxakalis”, com duração de 11 dias em um shopping popular da cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais. Era uma proposta do Setor de Arqueoastronomia e Etnologia Americana de extrapolar os muros da UFJF, do qual fazia parte como estagiária voluntária há três anos. Tinha sido convidada pelo Prof. Franz Hochleitner em uma visita que fiz com minha amiga Adriana, quando cursávamos o Ensino Médio. Aceitamos.

Hoje, ao olhar em retrospecto, vejo que minha entrada no mundo dos museus foi muito precoce. Eu não sabia nada, evidentemente. Também não aprendi sobre o tema na faculdade de História, que iniciei em 1996. A oportunidade de fazer pesquisa de campo com os Maxakali foi uma experiência transformadora (ver Encontro marcado: memórias com os Maxakali – EXPORVISÕES (exporvisoes.com))

Eu tinha então 18 ou 19 anos e queria fazer uma exposição para as escolas. Foi então que surgiu a parceria com o shopping popular da cidade. Com orçamento zero, consegui patrocínio e apoio de escolas, do comércio, da UFJF e da FUNAI.  Mobilizei minha família e uma rede de amigas para ajudar a dobrar e encadernar mil livretos da exposição em minha casa, que virou do avesso com tanta agitação. A equipe não era grande, mas muito engajada. Minhas  irmãs participaram ativamente: Juliana fez a arte e Paula a revisão, além de escrever textos para o livreto. Minha mãe pintou os convites um a um, bem como a camisa que utilizamos. Foi uma exposição artesanal e amorosa.

Arte do convite da exposição, por Irene Martins.

 

O Setor tinha lindos painéis expositivos e vitrines, que foram fundamentais para a realização. Enviamos para as aldeias Pradinho e Água Boa papel, lápis e canetinhas com o convite para as crianças desenharem seu cotidiano e foi uma alegria receber o envelope recheado de arte e poética. Os desenhos foram expostos em um painel central, perto da exposição da artista plástica Nancy Vieira com seus quadros sensíveis e tocantes sobre a pluralidade cultural das sociedades indígenas. Havia também painéis com fotografias de visitas a campo da equipe do Setor. Também exibíamos o documentário sobre os Maxakali em uma televisão e tínhamos sessões de contação de histórias com apoio de um grupo maravilhoso da cidade, coordenado por Laura Delgado.

Palestra da Maria Diva e Rafael Maxakali
Acervo pessoal Carina Martins.

O folder da exposição apontava para a pluralidade das sociedades indígenas no contemporâneo, denunciava as violências sofridas e defendia a proposta de contar uma História diferente dos livros que naturalizavam o ponto de vista do colonizador. Terminava convidando: “Tudo foi preparado com muito carinho pensando em você, sem a pretensão de que as cores e formas fiquem aprisionados na vitrine. A intenção é mostrar nossas raízes e envolver cada vez mais pessoas, como você, em defesa de uma cultura tão rica. Aproveite!”.

Folder do evento, 1998.

 

Havia uma confusão terminológica entre povo, etnia, tribo e sociedade que também marca a própria historicidade do mesmo. A própria denominação da exposição, com índios Maxakalis, era um erro, logo apontado por uma pesquisadora mais experiente, pois o correto seria ser no singular. Contudo, desde aquele momento, aprendi que fazer é errar, e optei que meu caminho seria esse mesmo. Preferiria, e ainda hoje prefiro, fazer e errar do que não fazer. Ou apenas ficar na crítica, sem conhecer o árduo processo, recheado de constrangimentos, do fazer.

A exposição tinha uma programação científica, com palestras sobre diversos temas. Após a abertura com o Prof. Franz, fundador do Setor, a Profa. Márcia Angelina Alves da USP palestrou sobre “Etnicidade” no cinema do shopping. Foi um fracasso de público porque as escolas agendadas não foram por problema de ônibus e lembro de chorar com essa decepção. Recebi naquele momento uma carta do amigo Cornélio, rapidamente escrita numa folha do caderno que guardei com todo carinho, puxando a minha orelha e chamando a atenção para tudo que já tínhamos conseguido fazer.

Após mais de 20 anos, encontrei-a nos meus guardados, um pouco apagada por ter sido escrita a lápis. Reli com olhos cheios de água porque hoje faz ainda mais sentido. Dizia assim:

“Carina, Por que é que você está chorando? Antes os índios eram massacrados. Mais tarde (recentemente) alguma dignidade lhes foi reconhecida. Hoje, uma moça de 18 anos consegue à custa de muito sonho e esforço realizar este trabalho. Isso era impensável há 5 anos, há 10 anos nem pensar! Ainda mais em Juiz de Fora! E você acha pouco! Porque não foi como você quis no primeiro dia! Olha, você está numa estrada muito longa, que começou muito antes de nós e vai para além de nossas vidas (…) Abra mão, um pouquinho, do sonho de ver a exposição cheia. Importam coisas que não estão sob nosso controle – pertencem aos índios seus esforços – mas sim sob controle das potências espirituais que governam nosso país e precisam de nosso amor e da nossa coragem para o plantio dessas sementes cujo destino pressentimos, mas desconhecemos. (…) Parabéns! Só se entristece assim quem tem sonho e amor, quem investiu o melhor de si no que lhe coube fazer. Então alegria! Salve!” 

Rosto lavado e, no dia seguinte, repetimos a palestra da professora, que gentilmente se disponibilizou para um cinema lotado. Nos dias seguintes, o administrador regional da FUNAI, Wilton Madison, também proferiu uma palestra sobre “FUNAI e o índio”. O ponto alto da programação foi, sem dúvida, a participação dos professores indígenas Maria Diva e Rafael Maxakali, na palestra “Nós, índios Maxakali”. Finalizamos a programação com a palestra “Brasil 500 anos”, com a Profa. Luciane Monteiro, então mestranda da USP e pesquisadora do Setor.

Criamos ainda um livreto da exposição que tinha 12 páginas, em preto e branco com desenhos de Bassílio, Ismael, Joviel, Gilmar  e Rafael Maxakali. As fotografias eram minhas e os textos de Paula Martins e Luciane Monteiro, entrecortados por depoimentos de Manoel, Zezinho, Pauleno e Valdemar Maxakali. Importante lembrar que, àquela época, o domínio da língua portuguesa era praticamente exclusivo dos homens. Os temas eram a exposição, apresentação dos Maxakali, lutas pela terra, língua, moradia, religião, casamento artesanato, alimentação, meio ambiente e futuro. A pergunta final era “Futuro: qual é ele?” com uma ilustração do Prof. Rafael Maxakali sobre a escola diferenciada indígena e a afirmação da importância do respeito ao direito às terras.

Capa do livreto, 1998.

 

A exposição mobilizou a cidade com a ida de muitas escolas e centenas de estudantes. Toda a equipe do Setor trabalhou intensamente na monitoria, além de amigas que se somaram. Acredito que alguns ainda lembrem.  Antes da pandemia, em visita à cidade, fui parada na rua por uma professora de ensino fundamental que lembrava e dizia o quanto tinha sido impactada porque nunca antes tinha ouvido falar em indígenas em Minas Gerais. Curioso! Se você tiver alguma memória, compartilhe com a gente.

Registro da exposição
Acervo pessoal Carina Martins.

 

Registro da exposição
Acervo pessoal Carina Martins.

Certamente que hoje teríamos outras discussões e pesquisas sobre o tema. Ainda assim, acredito que nesse exercício juvenil tenha conseguido captar movimentos que permaneceram como norteadores de minha prática: a polifonia, o protagonismo dos indígenas, a força da arte e a importância de um diálogo contínuo entre as instituições educativas e culturais. Além, claro, de ter aprendido que quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

Agradeço, nessas memórias, a todos/as que participaram de Bay Xeká que quer dizer… não é que esqueci? Bay eu lembrava que era bom, um cumprimento, portanto, bay xeká. Consultei no dicionário Maxakali- português. Xexka é grande, também escrito “Xeká”. Bem grande nossa ignorância sobre os indígenas, finalizo eu refletindo décadas depois.

[cite]

Comentário

  1. Maravilhoso trabalho! Sinto muito orgulho de vocês.

  2. Querida Carina… como o seu coração se expande no que você faz; que generosidade; que rara generosidade que percuciência que lembranças… Que bom saber que você é Presente como professora! Ainda me lembro do rosto de um jovem Maxacali, visto por mim num átimo, ele dentro do ônibus entre seus parentes, vindos todos de tão longe (culturalmente tão longe)… e naquele segundinho de nada a feição dele e a sua se sobrepuseram em minha mente – e assim é até hoje! Inesquecível! Carina, obrigado pela lembrança… também não me esqueço daqueles dias, daquelas emoções, daqueles sonhos.

    1. Querido Cornélio, obrigada por sua mensagem tão querida e por essas imagens potentes que compartilha comigo. A vida cheia de átimos prenhes de sentido para quem sabe olhar. Você me ensina demais!! Muito, muito, muito obrigada.

  3. Carina, que linda história! Eu consegui “ver” tudo o que aconteceu a partir desse relato. Muito lindo mesmo.