Sobre escavar silêncios e esquecimentos
por Aline Montenegro Magalhães
ATENÇÃO!!! O texto a seguir tem leves “spoilers” do filme “A escavação” de Simon Stone, 2021 – disponível na Netflix.
A inspiração para as reflexões que compartilho aqui foi o filme “A escavação”. A trama, baseada em fatos reais e inspirada na obra homônima de John Preston, se passa às vésperas da eclosão da Segunda Guerra Mundial, mais precisamente no verão de 1939, em Sutton Hoo, próximo à costa de Suffolk, Reino Unido. Apresenta o desenrolar do trabalho de escavação, descoberta e patrimonialização de objetos e vestígios de um barco funerário, de 27 metros de cumprimento, datado do século VI, que estava soterrado a metros de profundidade, nas terras de Edith Pretty, interpretada pela atriz Carey Mulligan.
Conhecedora e amante da antiguidade egípcia, tinha forte intuição de que sua propriedade escondia preciosidades de tempos remotos, o que a levou a contratar Basil Brown (Ralph Fiennes). Visto como arqueólogo amador, Brown se reconhecia e se apresentava como escavador, rejeitando o título de arqueólogo e valorizando o ofício herdado do pai e do avô. Não tinha formação universitária, num tempo em que a arqueologia se consolidava como campo disciplinar, mas seus saberes e práticas eram tão reconhecidos, que ele prestava serviços para museus, como o de Ipswich. Aliás, eram os museus que gerenciavam esse tipo de trabalho ali.
E a história vai se desenvolvendo, mostrando os desafios, os perigos, os medos, os erros, os fracassos, as esperanças cultivadas, a persistência de Edith e Brown e, enfim, o sucesso dessa escavação. Sucesso que quando divulgado passou a ser cobiçado por instituições e intelectuais. Os especialistas do Museu de Ipswich, que quando procurados inicialmente negaram apoio à iniciativa, por não acreditarem nela e estarem envolvidos em outro empreendimento arqueológico, passaram a ser presença constante no sítio, assediando Edith para que os achados fossem integrados às suas coleções. De outra parte, Charles Phillips (Ken Story), arqueólogo do Museu Britânico, toma a frente dos trabalhos com sua equipe e tenta excluir Brown das atividades. Não conseguindo, graças à intervenção constante de Edith, insiste em mantê-lo numa posição menor, subestimando seu talento e conhecimentos. Justamente por não ter diploma nem vínculos institucionais formais, Brown tem sua autoridade no ofício contestada, deslegitimada e, aos poucos, silenciada. Assim, o filme mostra como as disputas pelo achado iluminam outras, como entre instituições que desejam ser as mais adequadas para preservar os objetos e a da autoridade sobre um determinado conhecimento e ofício.
Os profissionais institucionalizados e reconhecidos por seus diplomas se sentiram no direito de se apossar da autoria do feito e silenciar o papel de quem efetivamente o realizou. Apenas recentemente os nomes de Edith Pretty e Basil Brown foram divulgados na galeria que exibe essa coleção, no Museu Britânico.
Há um objeto dessa coleção que se tornou um ícone desse achado, que desconstrói a ideia da Idade Média britânica como Idade das Trevas. É certo que o barco funerário preservava uma série de objetos de grande valor estético, histórico e também econômico, como moedas de ouro, espadas, utensílios, jóias, instrumentos musicais, entre tantos outros. Inclusive, oriundos de diversas regiões da Europa, indicando os trânsitos por mar, rios e terra, bem como o contato com diferentes povos. São vestígios materiais que contribuem para a construção de olhares mais complacentes para o passado britânico e para a reconfiguração da identidade nacional. Mas, o objeto em questão é o Elmo de Sutton Hoo, confeccionado em bronze com detalhes em dourado e fios de prata, estampando imagens de animais e marcas de uso.
O Elmo teria sido enterrado com o guerreiro que mereceu todas as homenagens em sua câmara funerária, expressas na abundância e no alto valor dos objetos ali depositados. Não havia corpos nos restos do navio encontrado. Mas aqueles objetos deram materialidade a um poema épico anglo-saxão, Beowulf, que trata de um guerreiro e seu Elmo. Uma história imaginada ganha contornos de um passado que efetivamente poderia ter existido… Sua importância é tamanha que constitui um dos objetos selecionados pelo diretor do Museu Britânico, Neil Mac Gregor, em sua obra “A história do mundo em 100 objetos”.
E que ego, que vaidade não gostaria de ter seu nome associado às glórias de tamanha descoberta?
Daí as disputas e tentativas de apagamento e silenciamento de protagonistas do feito, não reconhecidos como merecedores dos louros, por não partilhar da mesma formação, dos mesmos espaços de atuação. Quanto a isso, não pude deixar de relacionar as disputas expostas no filme com as “querelas entre Antigos e Modernos”, geralmente apaziguadas e esquecidas na história escrita pelos vencedores. São os atritos entre tradições e inovações na configuração de um tempo, de experiências humanas que desejam se reconhecer como diferentes do passado, por isso modernas e mais “autênticas”, como mostra o ensaio de Antônio Edmilson Rodrigues sobre esses movimentos, identificados em diferentes momentos históricos. E como não lembrar de outras disputas do gênero, como a dos Antiquários x Historiadores pelo monopólio da autoridade sobre estudos do passado, tão brilhantemente estudada pelo saudoso professor Manoel Luís Salgado Guimarães?
Enquanto assistia ao filme, lembrei-me também de dois estudos sobre o Museu de arqueologia de Itaipu (MAI), inaugurado em 1977, nas ruínas do antigo recolhimento feminino de Santa Teresa, em Niterói, Rio de Janeiro. Um deles, a tese de doutorado da museóloga e historiadora Maria De Simone, analisa os discursos construídos pelo MAI e as narrativas do patrimônio cultural ali produzidas. Ao decapar estratos do tempo e as camadas de memória do lugar, expõe diversas querelas, como as tensões entre o amadorismo que formou as primeiras coleções arqueológicas do museu e as pesquisas ali realizadas no contexto de consolidação da arqueologia como um campo disciplinar no Brasil. Entre o Iphan com sua prerrogativa preservacionista, principalmente após o tombamento das ruínas em 1955, a preservação praticada nos usos do edifício pelas comunidades de seu entorno, a exemplo da colônia de pescadores artesanais, e a pressão da especulação imobiliária. Disputas de memórias que se baseiam na mesma coleção para contarem histórias diferentes sobre o passado e o presente da região.
O outro estudo, a dissertação de mestrado da museóloga Mirela Leite de Araújo, analisa a relação entre o MAI, por meio de sua exposição permanente, e a comunidade de pescadores artesanais do seu entorno. Descortina mais uma série de tensões e atritos, enfatizando o distanciamento então existente entre a instituição e sua vizinhança. Seu estudo não apenas analisa a complexidade de questões enfrentadas pelos moradores daquela região, a exemplo da pressão da especulação imobiliária ameaçando o meio ambiente e as formas de vida tradicionais, como aponta para possibilidades de aproximações e trabalhos coletivos como forma de lidar com os esse tipo de desafios. Ações fundamentadas no princípio da autoridade compartilhada entre o corpo técnico do MAI e os pescadores artesanais são alguns dos caminhos indicados na dissertação e que, certamente, inspiraram a elaboração de um inventário participativo, coordenado por ela e pela historiadora Bárbara Primo.
A mirada afetiva aqui compartilhada sobre essas experiências de formação de coleções e sua musealização, nos ajuda a compreender os museus como lugares que articulam e agregam diferentes saberes e práticas, e também onde se escava silêncios e esquecimentos de processos, querelas e pessoas que constituíram a história dessas instituições, como o Museu Britânico e o MAI de Itaipu.
__________________________
Referência bibliográfica citada, mas não encontrada online: RODRIGUES, Antonio Edmilson M. “A querela entre antigos e modernos: genealogia da modernidade” In FALCON, Francisco José C. e RODRIGUES, Antonio Edmilson M. Tempos Modernos: ensaios de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
[cite]
Adorei o texto Aline. Parabéns! Ainda não fui ao Museu de Itaipu: está na lista .
Está na lista de programas para quando acabar a pandemia. Bora?
Beijos e muito obrigada!
Aline