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Sentir é mais (muito mais) do que saber

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por Paula Martins.

 

Milhares de pessoas, como eu e você, estão há mais de um ano em isolamento social, dentro de seus lares, em home office, se dividindo entre várias atividades com a sensação de que o dia a dia é um eterno looping. Que por mais que façamos, sempre é pouco. E, para piorar, em tempos de desgoverno, ainda nos sentimos acuados pelo negacionismo daqueles que insistem em ver e não enxergar.

Por aqui, dentro do meu pedaço, já passei por muitos estágios desde março do ano passado: do medo à paralisia; da insegurança à limpeza excessiva de todos os cantinhos da casa (que eu nem sabia que existiam!); da vontade de ficar deitada ao movimento incessante de uma vassoura. De um momento para o outro, experimentei a necessidade premente de olhar para mim mesma e exercer o cuidado. Mas como nos cuidar, nesse contexto, ampliando a potência da vida?

O fazer manual, tão familiar para muitos de nós, pode trazer a possibilidade de criação e invenção de outros mundos. Quem não se lembra da avó ou mãe ou tia bordando, sentada em um cantinho da casa, entre uma função e outra ou o barulhinho da agulha de uma máquina de costura que ecoava dentro de casa e, hoje, está registrado nas memórias afetivas?

Ecoa dentro de nós e ocupa a casa, um espaço considerado de menor importância em relação ao que acontece lá fora já que sempre está associado às atividades domésticas femininas. Só que os tempos são outros e o crochetar, o tricotar, o bordar extrapolaram os limites da casa. Seja com um propósito estético ou utilitário, ético ou poético, pedagógico ou político, o fazer manual  também não é mais exclusivamente relacionado à mulher ou à dona de casa.

Isso porque fios, texturas, botões, agulhas movem a economia (cerca de 50 bilhões de reais, no Brasil, em 2018) e os novos formatos dos cursos on-line reforçam o quanto o fazer com as mãos tem salvo muita gente nessa pandemia. Confesso que, ao recorrer às mãos ao transformar papéis e tecidos em novos formatos, esse último ano fez algum sentido para mim e livrou-me de loucuras.

E livrou-me, em diferentes momentos, da ansiedade, insegurança e medo provocados por esses tempos inéditos, ao mesmo tempo em que provocou novas perguntas e possibilidades, como reconhecer a potência das mãos que se movimentam ora rápido ora com mansidão, em gestos contínuos que, descobri, alimentam a alma.  Mãos que desbravam novos caminhos e nos reconfortam como mulher. Que ampliam olhares e possibilitam conforto na experiência dos múltiplos fazeres manuais. Que provocam o reencontro comigo mesma me permitindo a sentir e a entender as artes-manuais como uma experiência que pode transformar o indivíduo. Que pode mostrar a mim e ao outro que se têm condições de criar um novo caminho, apesar de.

O fazer com as mãos como uma experiência. Uma experiência, que é prudente destacar, tal qual faz soar de modo particular e relativamente complexo Jorge Larrosa (2011) em “Experiência e Alteridade em Educação”. Segundo Larrosa, a experiência é uma relação com algo que não sou. É uma relação em que algo tem lugar em mim, me faz outro do que sou. O sujeito da experiência é como um território de passagem, com uma superfície de sensibilidade em que algo passa e “isso que me passa”, ao passar “por mim” ou “em mim”, deixa um vestígio, uma marca, um rastro, uma ferida.

Desse modo, põe em jogo a si mesmo no que vivencia, pois estabelece relação entre o que experiencia e sua própria subjetividade. Se o fazer manual é potente, se é feito por mulheres, dentro de casa ou em consultórios, galpões, museus, hospitais, casas de abrigo, é imprescindível que essas experiências sejam compartilhadas com muitas, muitas pessoas. E que sejam legitimadas pela palavra. Que provoquem outros textos e outros caminhos…

Paulo Freire, em sua obra, nos chama a atenção para a capacidade ontológica de sonhar, que nada mais é que a possibilidade de “resgatar em nós todos e todas a humanidade mais autêntica, roubada por esses e essas que nos exploram e nos mutilam”. E que só é possível em um exercício cotidiano de “exercitar a resistência não como ressentimento, mas como investimento naquilo que alegra”.

O isolamento social confirmou que as artes-manuais são uma ferramenta para reverenciar a ancestralidade. Para trazer a intimidade de dentro para fora. Para compor afetos. Para curar feridas. Mas, principalmente, as artes-manuais são um caminho para mulheres, sujeito de sua experiência, dizerem o que querem, mostrarem o que não é justo aceitar, reivindicar o que é preciso para uma sociedade, de fato, democrática e menos preconceituosa.

O fazer manual, como um modo de estar no mundo e de transformar a si e a realidade, aponta para aquilo que, no fundo, talvez, não tenhamos, muitas vezes, coragem de experienciar – sentir é mais (muito mais) do que saber.

[cite]

Comentário

  1. Que lindeza de texto! Emocionante e inspirador. Parabéns, Paula. O que você faz com suas mãos permite essa troca de sentimentos, de afetos. Obrigada

  2. Maravilhoso texto. Grata. Diz mto do meu trabalho. @88inspiracoes

  3. “as artes-manuais são uma ferramenta para reverenciar a ancestralidade.” Amei isso! Estou experienciando particularmente esta situação reverencuando receitas antigas de minha avó paterna de ascendência pomerana e isso está me fszendo muito bem nesses tempos pandêmicis! Me identifiquei bastante com o seu texto! Muito obrigada por trazer à luz essa reflexão!!!

  4. Eu quem lhe agradeço, Aline! Provocar no leitor a experiência da troca, a partir das palavras, de afetos, é gratificante para mim!

  5. Obrigada por palavras tão carinhosas, Amanda! Reverenciar nossa ancestralidade e compartilhar nossas experiências a fim de nos fortalecermos nesses momentos tão impensáveis que vivemos. Um beijo!

  6. Que belíssimo texto, fez eu me lembrar do barulho da máquina de costura da minha mãe enquanto trabalhava e dos momentos de partilha com minha madrinha ensinando a arte do crochê, realmente, sentir é muito mais do que saber!