Imagens da Abolição no Museu Histórico Nacional
por Aline Montenegro Magalhães
Estamos nos despedindo de maio e não poderíamos deixar de falar sobre as memórias do dia 13, data da assinatura da lei que aboliu a escravidão no País, em 1888. Insistimos no tema pela importância de refletir e questionar sobre as formas com que esta data foi moldada no imaginário social, como uma dádiva da monarquia aos escravizados que assim teriam aguardado por mais de trezentos anos.
Nesse longo processo de construção da Princesa Isabel como “A Redentora” e dos escravizados como seres pacíficos, pacientes e submissos, além de gratos pela liberdade concedida, os museus de história tiveram um papel crucial. Enquanto esbanjam imagens e objetos que consagram personagens tidos como heróis desse feito, como a própria princesa, o Conselheiro João Alfredo e d. Pedro II, por exemplo, silenciam sobre os conflitos e o papel de escravizados e escravizadas nas diferentes formas de resistência ao regime e de luta pela liberdade.
A inspiração para a escrita deste artigo foi o vídeo de Lilia Schwarcz refletindo sobre o mito dos abolicionistas salvadores, no qual a antropóloga analisa uma estatueta da Princesa Isabel do Museu Mariano Procópio e um grupo escultórico do memorial do Abraham Lincoln nos Estados Unidos. Ela mostra como a postura dos representados, diz muito sobre a construção desse mito. Enquanto os estadistas aparecem num plano superior, altivos e soberanos, os escravizados libertos estão numa posição inferior, subjugados fisicamente e em postura de gratidão.
No Museu Histórico Nacional há algumas imagens que, seguindo essa linha de representação, contribuíram para o fortalecimento do mito de salvação dos escravizados pelos ditos abolicionistas. Vamos nos dedicar aqui à análise de duas. Uma, que atualmente está em Reserva Técnica, é uma estátua em homenagem ao Conselheiro João Alfredo. Outra, exposta no circuito permanente, é uma alegoria à Lei do Ventre Livre.
A estatueta em homenagem ao Conselheiro João Alfredo não tem autoria, mas em sua base há uma inscrição que indica procedência e data: “Presente do Partido Conservador de Pernambuco, 1888”. Foi integrada ao acervo do Museu Histórico Nacional por meio de compra, em 1941, junto com mais de vinte objetos que constavam no espólio do político depositado no Banco do Brasil. Conforme o próprio Conselheiro escreveu em seu testamento, “o museu comemorativo de minha carreira pública”. A compra dessa coleção diz muito sobre o interesse da instituição em fortalecer a memória do Estado Monárquico como o responsável pelo fim do regime escravocrata.
Medindo 47,50 centímetros, carrega o peso do ouro da prata, da ágata, e das pedras preciosas ali incrustadas, como brilhantes, esmeraldas, diamantes e rubis. Com o formato de um obelisco em miniatura, traz no topo a figura de João Alfredo feita em ouro, trajando o uniforme de senador do Império, sobre um globo esculpido em pedra Lápis-lazúli, envolvido com águias de asas abertas. Com a mão esquerda à cintura, o braço direito está estendido, e a mão segura a Lei n.3.353, de 13 de maio de 1888.
Nas faces do obelisco, placas prateadas marcam uma linha do tempo da trajetória do político, desde o nascimento até 1888, com informações sobre sua carreira acadêmica e política. Abaixo, nas faces que compõem a base do obelisco, placas douradas estampam os nomes dos ministros do Império que compunham o Gabinete de João Alfredo àquela época, como o senador Antônio da Silva Prado e o deputado Antônio Ferreira Vianna.
Sem me deter muito na descrição dos ornatos do objeto, que são muitos, gostaria de chamar a atenção para a presença de um menino negro na base da escultura, certamente remetendo à atuação do Conselheiro no Gabinete do Visconde do Rio Branco à época da Lei de 28 de setembro de 1871, mais conhecida como “Lei do Ventre Livre”. Com os pés descalços e portando apenas uma espécie de tanga, o menino olha para o alto com os braços abertos, também elevados, numa atitude de agradecimento por uma graça alcançada vinda de cima, numa postura devota e de subserviência, que fortalece a sacralização do homenageado, para quem parece mirar. É preciso olhar a estatueta com atenção para reparar a presença do menino negro, pois além de estar na parte mais inferior do monumento, sua cor se mistura com o escuro da placa do obelisco e da pedra que consituti a base de sustentação do objeto. Tanto é que nas descrições da imagem ele não costuma ser citado, como nesta que já apareceu em legendas e está na descrição de sua documentação museológica: “Estatueta com a figura do Conselheiro João Alfredo, base de ágata, incrustada de prata, ouro e brilhantes, diamantes, safiras, rubis e esmeraldas”. A referência ao homenageado e à riqueza do material com que a peça foi feita se sobrepõe às demais características, eclipsando a presença do menino ali.
A outra imagem que iremos abordar, também representa um menino escravizado, que teria recebido sua liberdade com a lei de 1871. A “Alegoria à Lei do Ventre Livre” é uma escultura em gesso pintado de negro, medindo 171 centímetros, cuja confecção pelo escultor francês A. D. Bressae foi uma encomenda feita por membros do movimento abolicionista, provavelmente para presentear o Imperador d. Pedro II. Deve ter sido produzida no mesmo ano da lei, integrando o acervo do MHN desde sua criação, em 1922, quando transferida do Museu Nacional, junto com outros objetos que pertenceram à Família Imperial.
Chama atenção não só por seu tamanho, mas sobretudo por sua expressividade. Também portando apenas uma espécie de tanga, com os pés descalços, o menino sorridente tem o seu braço esquerdo flexionado e levemente suspenso para trás, trazendo na mão o fragmento de uma corrente rompida. Outro fragmento de grilhão está preso ao seu tornozelo esquerdo. Seu braço direito está para o alto e sua mão direita sustenta uma placa com os dizeres: “Honra a d. Pedro II. [ilegível] da emancipação de 28 de setembro de 1871. No Ministério do Vde [visconde] do Rio Branco”. A placa, por seus dizeres e posição acima da cabeça do menino, é o que, mais uma vez, corrobora para a heroicização de personagens como abolicionistas, colocando o escravizado liberto em postura de gratidão, inferiorizado. O que para muitos significava uma postergação para o fim do regime escravista, a lei de 1871, na escultura, aparece como uma grande vitória nesse processo.
Vale também pensar na hierarquia que pode ser lida nessa escultura, em sintonia com as teses racistas e evolucionistas do século XIX, bem como com os contrastes presentes em outras expressões artísticas, como a pintura histórica, para sublinhar o distanciamento e a distinção entre grupos sociais representados. Se no topo há a homenagem aos estadistas, brancos, considerados cultos e civilizados, abaixo há os pés descalços do menino negro sobre uma pedra, que remete ao estado mais bruto da natureza, indicando o nível rudimentar dos negros nessa escala evolutiva da humanidade. Essa visão, tanto colaborou para a marginalização dos escravizados libertos e seus descendentes, quanto para uma postura de domesticação e tutela por parte do Estado, reverberando até hoje na desigualdade de acesso aos direitos e condições justas de vida.
Enfim, além da leitura crítica dessas imagens, é necessário mostrar outras visões da liberdade, para que os museus cumpram seu papel social no sentido de sintonizar seus discursos com a produção científica e a realidade contemporânea, além de pluralizar e democratizar suas narrativas, expondo tensões, conflitos e o protagonismo dos que lutaram de várias maneiras para conquistar o direito à liberdade.
Para saber mais:
RIBEIRO, Maria Laura. O testamento do Conselheiro João Alfredo Correa de Oliveira. Anais do Museu Histórico Nacional, vol. XIX, p. 140- , 1968. Acessível em: http://www.docpro.com.br/mhn/bibliotecadigital.html
CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. A memória afrodescendente nos museus brasileiros: o caso do Museu Mariano Procópio. Porto Arte: Revista de Artes Visuais. Porto Alegre: PPGAV-UFRGS, nov/dez, 2019; V 24; N.42 e-98275 e-ISSN 2179-8001. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/PortoArte/article/view/98275
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Canibalismo da Memória: O Negro nos Museus Brasileiros. In: Revista do IPHAN. Rio de Janeiro. P. 37-57, 2005. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/RevPat31_m.pdf
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