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Mariano Procópio: desejos de um outro museu possível

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por Robert Daibert Jr.

 

Desde os cinco anos de idade, conheço o Museu Mariano Procópio, instituição situada em Juiz de Fora (MG) e que guarda um dos maiores acervos da História do Brasil do século XIX. Durante minha infância, as visitas e passeios pelas galerias e exposições dessa instituição despertaram em mim alguns estranhamentos, fantasias, desejos e dúvidas. Eram experiências visuais e também olfativas que alimentavam minha imaginação a respeito de uma outra época. Além de todo o apelo visual, os museus também têm cheiros e sons, de modo que seus sentidos nos tocam de alguma forma.

Desde o tempo de criança, esse museu entrou no meu coração como memória afetiva e junto com ele o desejo de voltar àquele espaço que me parecia mágico e me permitia sonhar com um outro mundo, diferente do meu. E assim, embalado por esse desejo, voltei várias vezes durante minha vida escolar, ao longo da minha adolescência. Na vida adulta, voltei como professor de História, acompanhado por estudantes do ensino fundamental e médio. Voltei também como pesquisador, coletando dados para realização do mestrado e do doutorado. Posteriormente, voltei como professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, junto com outros alunos, em processo de formação como professores.

 

Em todos esses momentos, sempre acompanhado por outros sonhadores, prossegui fascinado pelo Museu, desejando dialogar com seus personagens em suas histórias e ainda decifrar melhor tanto os objetos expostos quanto aqueles depositados na reserva técnica. Felizmente, sempre fui atendido por funcionários e diretores competentes e responsáveis. Nessas visitas, sempre ouvi dizer que cerca de oitenta por cento do acervo estava guardado. Ainda hoje, essa informação me traz encantamento e estímulo. Atrás daquelas paredes, potencialmente, dormem outros museus possíveis, outras narrativas construídas com base em novas perguntas e respostas elaboradas em outras gramáticas. Como poderiam ser?

O Museu Mariano Procópio, inaugurado em 1921 como um museu privado, foi doado ao município de Juiz de Fora em 1936 por Alfredo Ferreira Lage, um monarquista, grande colecionador e responsável por um acervo eclético. A instituição nasceu, portanto, dos desejos de Alfredo e se tornou o primeiro grande museu histórico do Brasil. Pra concretizar esse sonho, Alfredo registrou e condicionou a doação a uma série de desejos, devidamente registrados em cartório. Alguns deles foram seguidos à risca ao longo das décadas, outros foram aos poucos abandonados. Os critérios e motivações em torno da seleção, descarte, preservação e (in)validação de seus desejos ao longo de décadas merecem um capítulo à parte, com ênfase nos chamados usos do passado e suas implicações na história da instituição.

O conjunto de desejos de Alfredo, mobilizados e filtrados pelos usos do passado ao longo do tempo, estruturaram um museu possível que de alguma forma sobrevive ainda hoje. Mas, se por um lado, a instituição tem um compromisso com esse passado e com seus usos, com ênfases seletivas dos desejos do doador,  por outro, é indiscutível seu compromisso com os desejos de memória dos brasileiros, com a pluralidade de suas vozes, com os avanços da museologia e da legislação pertinente. Como uma instituição pública, o Museu tem uma responsabilidade social e um compromisso democrático com narrativas plurais, que expressem as tensões em torno de diferentes protagonistas da nossa história.

 O Museu segue ainda hoje, ao comemorar seu primeiro centenário, despertando muitos e variados desejos. Uma pequena amostra disso pode ser observada em um recente abaixo assinado organizado por professores em um movimento intitulado “Salve o Mariano”.  Entre tantas assinaturas, encontram-se representados não só professores e estudantes, mas também trabalhadores, negros, mulheres, crianças, LGBTQIA+, enfim, cidadãs e cidadãos que reclamam seu direito à memória. Além disso, constam também adesões de pesquisadores de referência na área de museologia, patrimônio público, representantes de diversos Conselhos de Cultura, arquivos públicos, associações, centros culturais, museus e universidades do Brasil e do exterior.

Em poucos dias, esse documento caminha para atingir cerca de quatro mil assinaturas, registros poderosos de desejos que abraçam, por um lado, os desejos de Alfredo, ao mesmo tempo em que, de um modo diverso, alimentam os sonhos de um outro museu possível. Os pontos destacados pelos signatários e que serão apresentados e encaminhados à Prefeitura de Juiz de Fora e à sua Câmara Municipal reivindicam:

1) Finalização das obras; 2) Portas abertas do parque e dos prédios para visitação, conforme condições sanitárias; 3) Gestão definida por seleção pública e nomeação de gerentes técnicos; 4) Consolidação de suas funções sociais na pesquisa, cultura, educação, turismo e lazer; 5) Quadro completo de funcionários concursados com plano de carreira definido; 6) Conselhos Administrativo e Técnico-Consultivo atuantes; 7) Garantia de recursos financeiros para a abertura e pleno funcionamento do Museu; 8) Gestão autônoma e totalmente transparente; 9) Pluralidade e memórias de muitas vozes; 10) Valorização dos princípios de acessibilidade, democracia e inclusão; 11) Sólida conexão com o passado, mas também um forte projeto de futuro.

Todos esses pontos, caso sejam considerados e de alguma forma contemplados em um Projeto de Lei que tramita atualmente na Câmara Municipal da Cidade, poderão fundamentar a reestruturação do Museu em novos patamares. As questões destacadas permitirão a concretização de muitos sonhos e desejos, tanto os de Alfredo Ferreira Lage quanto os de milhares de cidadãs e cidadãos, em seu direito à memória. Nesse sentido, é preciso lembrar que o Mariano Procópio é sim devedor dos desejos (sempre no plural) de seu doador,  mas toda e qualquer medida a ser tomada em prol da sobrevivência e reestruturação da instituição precisa considerar e valorizar o conjunto de desejos que atualmente abraçam e sustentam o Museu. Não seria justo reduzir Alfredo e seu legado a um único desejo, ou aos desejos de um grupo de pessoas, nem fossilizar sua visão avançada, descaracterizando-a de modo a empobrecê-la. Como um homem moderno, ele dialogou com a legislação vigente, com a ciência e os intelectuais de seu tempo, buscando os mais avançados referenciais disponíveis em museus estrangeiros da época.

Sobre o Museu Mariano Procópio, sobre os desejos de seu fundador e sobre os desejos de todas as pessoas que sonham com outros museus possíveis, encerro citando Arnaldo Antunes:

“A gente não quer só dinheiro A gente quer dinheiro e felicidade A gente não quer só dinheiro A gente quer  [um Museu]  INTEIRO e não pela metade”

Robert Daibert Junior

Professor na Universidade Federal de Juiz de Fora.

Link para a petição “Salve o Mariano”: Abaixo-assinado · Salve o Museu Mariano Procópio · Change.org

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