Maré de Histórias: um olhar sobre o processo
por Sofia Carneiro
“…, cartilha, livreto, caderno pedagógico… Maré de Histórias…”
É processo. Talvez na Escola Municipal Nerval de Gouveia chamem de “livreto do Museu”, e na Escola Municipal Teotônio Vilela venha a ser “material pedagógico do Museu da Maré”, nas mãos de algum Gabriel pode ser que seja só “Caderno do Museu”… E que para cada indivíduo ele venha a ter uma nomeação e um sentido, – pois isto é processo, e ser processo é contar com a condição de inacabamento, é estar aberto às múltiplas possibilidades de apropriações, contestamentos, reinvenções, releituras; cria espaço de escuta, não está dado e nem termina em si: é território de diálogo e transformações – e para todos e todas, para além de se apresentar como um material de educação museal que se pretende a partir de uma proposta pedagógica de sensibilização do olhar, o “Maré de Histórias” é objeto parte do Museu e da Maré.
É processo. As variadas combinações de nomenclaturas apresentadas aqui se justificam por essa afirmação. O caderno surge de um processo de cocriação, são inúmeras e diversificadas vozes que se reúnem para pensar sua elaboração. É uma proposta de criação coletiva, polifônica e democrática e que segue um dos fios que tecem o próprio processo de existência e resistência do Museu da Maré: uma grande teia de memórias e narrativas contadas por diversas vozes, situada na dimensão afetiva que envolve o Museu e a história da Favela da Maré. Mas como, então, tocar nessa teia e proporcionar a ela uma materialidade e uma proposta que dialoguem com atividades pedagógicas? Como provocar o encantamento para os múltiplos sentidos do museu e toda a sua potencialidade transformadora? Esse texto busca refletir sobre como o caderno irá perseguir essas questões através da compreensão de sua estrutura narrativa e linguagem como elementos que irão acionar a imaginação do sujeito, dialogar com sua realidade, com a cidade e o território, levantando questões de identidade que provoquem reflexões e os estímulos criativos importantes para toda e qualquer transformação de realidade. Além disso, pretende-se aqui perceber esse caderno como um objeto que carrega e afirma em si a própria ideia de processo e todas as possibilidades de alargamento que, por ser assim, é capaz de tencionar.
“… vera, cláudia, antônio carlos, marilene, marli, marcos…”
O caderno pedagógico, o museu e a favela da Maré têm o mesmo protagonista em suas histórias: é o coletivo que se faz presente e atuante. Desde o seu surgimento até as lutas atuais por direitos, a Maré cresce e resiste a partir de sua força coletiva. “… Foram Marias, Josés, Raimundos, Sebastianas, Franciscos e muitos outros que trabalharam na construção da via e identificaram, na região desocupada e próxima, a possibilidade de moradia”. É assim que o caderno inicia sua narrativa. E será, assim, a partir de uma perspectiva polifônica, em diálogo com nomes, rostos e vozes, que irá se desenvolver e que se pretende multiplicar.
Entre contrastes de amarelo com roxo e amarelo com azul, as páginas iniciais são conduzidas por várias caixas de diálogo que pertencem às falas e memórias dos fundadores e equipe do museu. São páginas que não se dedicam apenas a registrar os olhares e os nomes dos envolvidos nessa história, elas representam uma contra-narrativa, e se afirmam como tal ao trazer, por exemplo, o samba-enredo de 2019 da Estação Primeira de Mangueira: “A história que a história não conta”. É ouvindo outras vozes e ressignificando e proporcionando novas leituras que a polifonia se faz democrática. Nessa perspectiva, o caderno irá provocar o leitor à reflexão de questões importantes relacionadas às definições de museu e favela atreladas às discussões de identidade, democracia e direito à memória. Cria-se, então, um espaço dedicado a explorar esse debate através de perguntas e atividades pedagógicas que irão colocar em cena a diversidade de pontos de vista que envolvem uma narrativa, através de perguntas e pesquisa de consulta à imprensa. Que ideia é essa de favela que habita o imaginário social? E de museu? Que práticas colaboram para a manutenção dessas ideias? O que você e vocês têm a dizer?
Dessa forma, o caderno busca tensionar o campo da discussão de memória ao criar embate de narrativas, contrastando palavras e ideias presentes nos discursos que definem o que é e quais são os lugares de cultura e memória.
“… quem usava esse objeto?… o que você pensa quando ouve as palavras museu e favela?… por que sua voz incomodava?… ”
No que se diz respeito à linguagem, é possível observar que o caderno pedagógico busca criar uma relação dialógica e afetiva entre o sujeito e o objeto, aproximá-los através de provocações. Para isso, irá se apropriar do conceito de “pedagogia da pergunta” proposto por Paulo Freire (1985) e explorado por Francisco Régis Lopes Ramos (2008) na discussão sobre a relação entre museu, ensino de história e historicidade dos objetos.
O desafio, portanto, é potencializar o campo de percepção diante dos objetos, por meio da “pedagogia da pergunta”, como diria Paulo Freire. Aprender a refletir a partir da “cultura material” em sua dimensão de experiência socialmente engendrada. (RAMOS, 2008)
Ao questionar, provocar e indagar sobre um objeto, o sujeito é capaz de ouvir as vozes que neste objeto falam e de ser provocado a falar e se ouvir também. Nesse momento é que se faz possível explorar pedagogicamente as temporalidades e construir reflexões críticas. Isto é, esse é o momento no presente em que passado e futuro se encontram e se alimentam: é quando o sujeito é capaz de acessar, atualizar, renovar e retransmitir a memória. O caderno irá incorporar essa proposta em toda a sua estrutura narrativa, de forma que as perguntas não estarão limitadas às páginas de atividades, jogos e pesquisas, mas estarão atuando como meio de articular debates e reflexões amplas para além dos objetos do acervo que o compõem. São provocações que permitem que o/a professor/a se aproprie, desenvolva e conduza tais discussões de diferentes formas.
Desse modo, não se trata mais de “visitar o passado”, e sim de animar estudos sobre o tempo pretérito, em relação com o que é vivido no presente. Com a excitação para a aventura de conhecer através de perguntas sobre objetos, abre-se espaço para a percepção mais ampla diante da exposição museológica. Mais que isso: alarga-se o juízo crítico sobre o mundo que nos rodeia. (RAMOS, 2008)
Esse olhar para a educação museal faz parte da filosofia e das práticas cotidianas do próprio Museu da Maré. Um exemplo seria o Chá de Memórias, em que os moradores se reúnem no museu e trocam histórias sobre objetos que levam de suas casas para o encontro ou objetos que já constam nas próprias exposições. O Chá de Memórias é um recurso pedagógico, criativo e afetivo e está presente no caderno não só como uma seção que conta a história do museu, mas também como inspiração para atividades e dinâmicas que possam ser feitas em sala de aula.
“…pesquisar, imaginar, aprender, explorar, observar…”
O infinitivo dos verbos: as atividades e brincadeiras presentes nas seções do “Caderno de Campo” e do Almanaque buscam seguir essa proposta de educação dialógica e afetiva do Museu da Maré. Por meio de perguntas como “vamos imaginar? vamos explorar? vamos observar?”, a criança é convidada a se relacionar com esse objeto (e com as discussões que ele provoca) através de uma dimensão simbólica, imaginativa e afetiva. Da mesma forma que o Jogo da Memória irá atuar, não através de perguntas graficamente introduzidas nas páginas, mas de questões que se articulam a partir da própria dinâmica do jogo: o intuito pedagógico é apresentar o acervo de maneira provocativa e imaginativa. Desse modo, a curadoria dos objetos que estão nesse jogo, pensada pela equipe durante o processo de cocriação, teve como critério trazer a diversidade dos tempos, das peças e atividades que constituem o museu, articulados por meio de diferentes dinâmicas de associações que podem provocar reflexões sobre os objetos e mobilizar discussões potentes para o campo da educação e da cidadania, como temas de diversidade religiosa; representatividade; direito à moradia e à vida na favela. A dimensão afetiva é, desse modo, pedagógica, pois se apresenta como terreno fértil para se repensar conceitos, contestar opiniões, fazer releituras e, assim, criar utopias.
… é processo…
É objeto de memória e está aberto, irá atuar no presente em diálogo com passado e futuro e irá buscar incorporar esta ideia a sua materialidade, potencializando, dessa forma, as próprias discussões de definição de museu, democracia e direito à memória, não só durante o seu processo de (co)criação através do debate coletivo, mas também na própria forma materializada que o objeto terá como “resultado” desse processo. Nesse sentido, foi de extrema importância incorporar nesse material questões do tempo em que se situa, se colocando receptivo ao não previsível: se permitindo ser atravessado por acontecimentos do presente e se posicionando coletivamente em relação a eles. A partir dessa ideia, e com o intuito de provocar e alargar tais reflexões, registros como o incêndio do Museu Nacional UFRJ (2 de setembro de 2018) e o assassinato da vereadora, nascida e criada na favela da Maré, Marielle Franco, (14 de março de 2018) se fizeram presentes no corpo material e na narrativa do caderno: estão presentes em objeto.
É processo e é constantemente atravessado. A pandemia do Covid-19 surge como mais um desses atravessamentos. O lançamento do caderno foi realizado de forma virtual em Fevereiro de 2021 e apesar do corpo impresso já existir, em respeito ao distanciamento social, sua divulgação tem sido feita em formato digital. A tecnologia se apresenta como um aliado cuja importância não havia sido prevista com tanto peso para esse momento do processo. Desde a possibilidade que ela cria de expansão do diálogo para além das páginas impressas, através do uso casual da ferramenta do QRcode, até a utilização de sua versão em PDF para ampliação e apropriação desse material em outros projetos. Dessa forma se fez possível a realização, também virtualmente, do curso de formação de professores pela equipe do Museu da Maré em parceria com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em Abril de 2021, que teve como proposta reunir profissionais da educação, em sua maioria do próprio território, para pensar e criar coletivamente desdobramentos para esse material.
Apesar da materialidade deste caderno ser importante para as questões que ele se propõe, não anula a participação da tecnologia em seu processo. Pelo contrário, as vias se complementam e contribuem para a amplificação de possibilidades de apropriação que esse objeto pretende ter.
Diante dessas reflexões, é possível perceber que a condição de ser inacabável deste objeto potencializa as discussões que carrega em si, para dentro e fora do museu e das escolas, e cria espaço para que outras possam existir. Mobiliza transformações, é processo e não termina em si.
Referências:
COSTA, C. M. Maré de Histórias. Rio de Janeiro: Rede Editora Gráfica, 2019.
FAUNDEZ, Antonio; FREIRE, Paulo. Por uma pedagogia da pergunta. 3aed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1998.
RAMOS, F. R. L. A história nos objetos. In: A danação do objeto: o museu no ensino de história. Chapecó: Argos, 2008. p. 19-31.
Muito lindo este texto que apresenta o material educativo do Museu da Maré. Parabéns à Sofia que, com inteligência e sensibilidade, soube honrar um material escrito a muitas mãos.
Gostaria de ter acesso ao livreto.
Vanessa
Muito obrigada pela leitura e pelas palavras sensíveis!! Fico muito feliz que tenha se interessado!
Será um prazer compartilhar o livreto com vc 🙂 Posso envia-lo por email! Qual é o seu endereço?
Muito lindo esse trabalho. Parabéns! Espero poder compartilhar com meus estudantes em breve. Ainda que no virtual.
Muito obrigada pela leitura, Marta!! 🙂
Também espero por isso, que em breve o livreto possa estar na mão de várias pessoas!!