“Olhos de ver: sobre labirintos e dédalos”
por Carina Martins
E é tão bonito quando a gente entende
Que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá É tão bonito quando a gente sente
Que nunca está sozinho por mais que pense estarÉ tão bonito quando a gente pisa firme
(Gonzaguinha, Caminhos do coração)
Nessas linhas que estão nas palmas de nossas mãos
É tão bonito quando a gente vai à vida
Nos caminhos onde bate, bem mais forte o coração
Estou em casa há mais de um ano e meio. É uma situação única em nossas vidas em que fomos convidados e obrigados a morar dentro de nós mesmos. Reconhecer o corpo como território original, singular, sagrado. E a partir das fronteiras de proteção exigidas pela pandemia, na distância que cada um/a de nós delimita para sua segurança e dos outros, aprendemos a reexistir.
Quem me conhece sabe que não desarrumo minha mala há pelo menos uma década. Eu quebro o GPS de meus afetos e famílias por estar por lá, por cá, sempre em movimento, numa peregrinação entre territórios, casas, espaços de trabalho e de aprendizado. Viajo muito, caminho, ando, peregrino e também paro, converso, observo, conecto, crio e participo da vida como ela se apresenta nesses fragmentos de experiência que me formaram desde que me entendo por gente.
A estrada, paixão de meu pai, que gostava mesmo era dos percursos, foi e é uma ponte para eu voltar a mim e as coisas. Solitária ou compartilhada, é quando me ajeito na poeira do mundo e descubro outras camadas de ser, ver e sentir. Hoje, ao refletir sobre isso, lembro de palavras duras que me apontavam o movimento como fuga ou descompromisso com a realidade. Uma querida amiga, em um dia que lamentava não estar mais presente para pessoas que amo, me enviou a música de Gonzaguinha que acessei com ouvidos de ouvir: “há muito tempo que eu estou na vida Foi assim que eu quis, e assim eu sou feliz”.
Qual a realidade, me pergunto? Em uma sociedade marcada pelo oculocentrismo, com a primazia da visão, do olhar de consumo e de desejo para coisas e pessoas, penso que peregrinar é uma forma de conexão com outros sentidos. Sinto a brisa no rosto quando acelero o carro como um passaporte para liberdade. Ouço novos sons à medida que saio da cidade e isso me acalma. Cheiro o aroma das flores e me recordo de meu quintal primeiro, da minha casa de infância, com as texturas e horizontes imensos para uma criança de 7 anos. Observo a diversidade, e saio de mim e de minhas referências.
Eu gosto da expressão “olhos de ver”, apesar da redução a um sentido. Já a escutei inúmeras vezes mas a primeira significativa foi com minha orientadora Profa. Angela de Castro Gomes. Exímia e espetacular historiadora, referência para tantas gerações, ela me narrou sua memória de um professor que usava essa expressão para diferenciar o ato de decodificar imagens do de ver com inteireza. Acho linda, portanto, a expressão e a recordação de segunda ordem que mostra um caminho filosófico e metodológico. Paulo Freire, viva ele, falava da leitura de mundo. Rubem Alves falava do sabor do saber. Um companheiro da consciência, outro da inconsciência, em diálogo permanente na tentativa de construir projetos educativos mais potentes. Observo que uma mestre me levou a dois outros. Retorno, então, ao meu itinerário textual.
Lembro de dois autores, em especial, que me sensibilizaram para os atos de ver, sentir e experienciar itinerários.
O primeiro é Yves de la Taille, professor da USP. Conheci o autor na minha formação como educadora e o reencontrei na casa dos amigos Thelma e Miguel, em Araguaína (TO). Gosto de conhecer bibliotecas pessoais e vasculhar as viagens intelectuais que andam fazendo. Assim, conheci a obra “Formação ética” , na qual ele traça possibilidades de deslocamento do tédio ao sentido. É inspirador e necessário, sobretudo nesses tempos cinzas. As fagulhas teóricas de Yves iluminam duas figuras, do turista e do peregrino. Um objetiva a chegada, o encontro consigo, o registro fotográfico, a inscrição, o espaço. Outro deseja o percurso, a experiência, a memória, o tempo, o outro. O turista está sempre em tédio, nesse sentido, pois ele tem um roteiro sistematizado, muitas vezes já viu e leu tanto sobre os lugares que não há espaços para os assombros, a descoberta. Ele busca o que já conhece, de si e do mundo. Já o peregrino se interessa mesmo pelo imprevisto, está atento aos sinais e às sutilezas que apenas o andar vagaroso e descompromissado pode proporcionar.
Temos uma literatura muito ampla de peregrinos ao longo da História. Me lembro aqui em especial de um belíssimo livro de Herman Hesse, “A viagem ao Oriente”, que me parece também um tratado de teoria da história. O personagem HH aponta “(…) nosso objetivo não era unicamente o Oriente, ou melhor, o Oriente não era apenas um país ou um fato geográfico, era também o lar e a juventude da alma, estava em toda parte e em parte nenhuma, era o conjunto de todas as eras.” (HESSE, 1959). Um viajante com alma, um peregrino, portanto.
O segundo é Tim Ingold, antropólogo britânico. Conheci este autor na disciplina de Antropologia da Arte que cursei na pós-graduação do Museu Nacional. Posteriormente, em um curso livre no Parque Lage sobre caminhar como ato político, reli o texto sobre dédalo e labirinto. “Se você é educado para saber demais sobre as coisas, há o perigo de ver seu próprio conhecimento ao invés das coisas em si. Argumento aqui que caminhar oferece um modelo de educação alternativo que, ao invés de inculcar o conhecimento dentro das mentes dos alunos, os leva para fora, para o mundo”. Eu não vou dar nenhum spoiler do delicioso texto nem quero discorrer teoricamente sobre as diferenças entre os autores. Apenas falar dos pontos inspiradores. O dédalo é a imagem que evoca o turista, as atividades escolares na cidade para fazer relatório. Uma forma moderna de pensar o conhecimento e o conhecer. Já o labirinto me lembra o peregrino, aquele que vaga, se perde, se descobre. Perde e descobre lugares e coisas e gentes. É pensar a presença como vulnerabilidade. É experimentar, é se expor, é afetar e ser afetado. É, afinal, uma forma de vida.
Já andei em dédalo e em labirintos. Já vaguei e naveguei. Já turistei e peregrinei. Como diria o autor, “há muitas maneiras de caminhar, e nem todas nos levam para fora” (INGOLD, 2015, p. 24). Em um momento em que minha mala está vazia e empoeirada, tento viajar pelas memórias e inspirações, indo para dentro, para depois ir para fora com mais atenção e presença.
Para saber mais
HESSE, Herman. Viagem ao Oriente. Rio de Janeiro: Record, 1959.
INGOLD, Tim. O dédalo e o labirinto: caminhar, imaginar e educar a atenção. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 21, n. 44, p. 21-36, jul./dez. 2015.
LA TAILLE, Yves. Formação ética: do tédio ao respeito de si. Porto Alegre: Artmed, 2009.