Marília Mendonça, museus e vozes femininas
por Carina Martins
Senti o baque da morte de Marília Mendonça, assim como grande parte do Brasil. Estava na estrada, cheguei e li a notícia, com a imagem do avião na cachoeira. Forte, uma cena espiritual de fluidez e purificação, de retorno à natureza, de finitude e eternidade.
Passei alguns dias mergulhada em parte de sua gigantesca obra. Assisti a live mais vista no planeta em 2020 e me admirei com sua voz, carisma e capacidade de comunicar pelas emoções. Em determinado momento, Marília trocou o sapato por um chinelo e pediu para não focarem nos seus pés, pois não fazia a unha há alguns meses. Nesse detalhe prosaico, Marília nos lembra que é esperado das mulheres fazer as unhas, ainda que na pandemia. Ela não fez e sabia que seu evento seria um estrondoso sucesso. Ela estava à vontade consigo, em sua casa, destilando talento e potência vocal. Ali, a cantora e compositora ensinou com seu exemplo sobre outras formas de estar no mundo como mulher.
“Hoje você me vê assim e troca de calçada, mas se soubesse um terço da história, me abraçava e não me apedrejava”, canta a prostituta ao homem que amou, que “viveu tanto desprezo que até deus duvida”. Ou também “Se quem tava comigo era ele, a culpa é dele. Quem fez essa bagunça na nossa amizade é ele/Eu não vou deixar de ser sua amiga por causa de um qualquer/Que não respeita uma mulher”, cantam Marília e suas amigas Maiara e Maraísa. Essas vozes femininas, permeadas por diferentes perspectivas que reiteram ou deslocam o patriarcado, pergunto às/aos leitoras/es, estão na música popular, mas e no campo patrimonial? E então, quais estão? De que forma?
Acabei de retornar de uma visita a Lisboa, onde pude revisitar a Fundação Calouste Gulbenkian. Este colecionador armênio que morou em Portugal e ali encravou seu desejo de memória me chama atenção há muitos anos pela similitude, com as devidas escalas, a Alfredo Ferreira Lage, em uma temporalidade na qual os mecenas dedicaram tempo e fortuna para construir coleções.
Para minha surpresa, havia uma espécie de enclave narrativo na exposição permanente, intitulado “O poder da palavra III: mulheres: navegando entre a presença e a ausência”. O exercício não era muito visível ao visitante comum, que continuava a percorrer os olhos na magnitude de uma coleção eclética e esteticamente poderosa. Ele foi incrustado nos textos, alinhado, dessa forma, com o nome, o “poder da palavra”. Já vale uma reflexão sobre o cenário contemporâneo de fruição museológica e a importância cada vez maior de linguagens e mídias que despertam outros sentidos. Mas aqui a reflexão ficará nas palavras.
O Museu explica que um grupo de mulheres percorreu a Galeria do Oriente Islâmico para responder a questão “Onde estão as mulheres nesta galeria e sob que formas aqui existem?”. Escolheram oito objetos para re-imaginarem histórias e preparem uma pequena exposição. A ação envolveu a equipe curatorial e educativa, investigadores convidados e um grupo de mulheres de várias línguas e nacionalidades. Elas têm seus nomes explicitados no item “As vozes do projeto” e é possível percorrer a galeria interativa à procura das intervenções pelo site (https://gulbenkian.pt/museu/o-poder-da-palavra-iii/).
A legenda da primeira intervenção é “As mulheres são círculos, os homens são quadrados”. Lembrei de uma canção de Marília Mendonça chamada “Vira homem” na qual narra uma decepção amorosa com um parceiro que lhe prometeu mudanças e não cumpriu. Ela diz “Não fez nada do que prometeu, faz assim, primeiro lugar você some, segundo lugar, vira homem, você é o terceiro que me perdeu”. Eu tenho uma amiga muito querida que diz que homem anda em L, enquanto nós circulamos. Eu aprendi, por vivência e observação, a confiar nesse poder feminino de re-criar, re-começar, re-fazer, mesmo diante dos fins dolorosos, como parece ser o terceiro da personagem criada pela cantora. Conhecemos, como mulheres, o fluxo circular pois ele nos relembra mensalmente o ciclo da vida. Alinhamos com sabedoria, às vezes mais, às vezes menos, ao tempo circular da natureza. Por isso e por muito mais, assombramos o masculino linear e a reta da lógica capitalista. No Museu, a evocação é realizada a partir de um prato circular azul, associado à feminilidade pelos motivos florais e delicadeza. Sarah Nagaty, uma das curadoras, escreve: “(…) é, para mim, multifacetado. Possui a capacidade de estar em movimento, de se deslocar, de fluir. As fissuras no prato representam, para mim, todas as mulheres que conheci e que, apesar das suas próprias fissuras, são capazes, tal como este prato, de fluir num belo movimento”. E, como diria Marília, supera.
Marília, conhecida como a rainha da sofrência em um mundo sertanejo predominantemente masculino, cantava para a nova mulher do infiel: “O seu prêmio que não vale nada estou te entregando, pus as malas lá fora e ele ainda saiu chorando, essa competição por amor só serviu para me machucar”, prevendo, inclusive, que após um tempo ele irá repetir a mesma história com ela. Homens são quadrados, nos lembra a cantora.
“Os pássaros fêmea sabem cantar”, o título de mais um objeto da intervenção. Joana Simões Piedade narra sua experiência: “mulheres? Encontrar mulheres na galeria não foi, para mim, tarefa imediata. O que chamou a minha atenção foi uma espécie de ligação entre mulheres e pássaros (…)”. Adiante, conta que leu um artigo que se referia que por mais de 150 anos, a ciência postulava que apenas pássaros macho poderiam cantar e que hoje tal hipótese foi rechaçada por novas descobertas, justo quando pesquisadoras começaram suas pesquisas na área. Joana termina: “tal como os pássaros fêmea foram silenciadas durante tanto tempo, também as vozes femininas foram silenciadas ao longo da história”.
A morte de uma mulher, pássaro-fêmea tão potente, com apenas 26 anos, deixa um rastro de tristeza. Eu, como mulher contemporânea à Marília Mendonça, reivindico que sua voz, bem como tantas outras, tenham continuidade e reverberação, não apenas pela imensa saudade que embalará seus fãs a reativá-las. Que Marília seja lembrada e re-presentada, que sua trajetória componha formas de dizer o feminino em espaços patrimoniais e este coro polifônico de formas de ser mulher que nos marca. Vozes contraditórias, roucas, vibrantes. Vozes que narram experiências, subjetividades, lutas, sonhos, saberes, produções, pesquisas e o que mais quiserem. Que as mulheres que nos embalam a alma, que nos motivam a olhar para dentro, que protagonizam suas histórias, em tempos e espaços próximos e alheios aos nossos, estejam conosco na trilha da memória. Que não sejamos esquecidas, diminuídas e enfraquecidas no que dizemos, sentimos e fazemos. Hora de nos exibirmos, também, sem esmalte.
Mary Beard, em livro recente intitulado “Mulheres & poder: um manifesto”, analisa o quão profundamente estão gravados os mecanismos de silenciamento das mulheres na cultura ocidental. Em digressões sobre a História Antiga, trabalha com as representações das vozes femininas na tradição greco-romana, apontando para a permanência (longa, longuíssima) da interdição da voz feminina no espaço público e a constante exibição destes mecanismos, para não restar dúvida. A historiadora lembra que as vozes femininas eram ouvidas em poucas condições, mas sobretudo para falar como mártir, vítima ou defender sua casa e família. Que essas narrativas contemporâneas ampliem e desloquem esses lugares, ou visibilizem os mecanismos de silenciamento. Há um longo caminho a percorrer, e a museologia, por exemplo, está cada vez mais atenta a isso.
Gostei da exposição? Sim, certamente. Passei uma tarde fotografando, anotando impressões, observando visitantes e conversando com funcionários. O fatídico caderninho de campo no celular. Mas, de fato, é necessário muito mais para este poder da palavra ser ao menos visualizado. Saí com a sensação de falta de uma grande lupa na exposição. E aí veio Marília, que canta, narra e embala milhões de pessoas. Um diálogo com a cultura popular ou indústria cultural, por que não, museus? Aguardo por superações institucionais.
PARA SABER MAIS :
BEARD, Mary. Mulheres & Poder: um manifesto. Lisboa: Bertrand Editora, 2018.
ICOM ESPANHA. Revista do Comitê Espanhol do ICOM, “Museos, género y sexualidade”, No. 8, 2013.
OLIVEIRA, Ana Cristina Audebert Ramos & QUEIROZ, Marijara Souza. Museologia ”“substantivo feminino: reflexões sobre museologia e gênero no Brasil. Revista do Centro de Pesquisa e Formação, nº 5, pp.61-77, 2017.
RECHENA, Aida Maria Dionísio. Sociomuseologia e género: imagens da mulher em exposições de museus portugueses. Tese de Doutoramento, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, 2011. Revista Memória LGBT. Ano 1, Número 01, 2013.