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Musealizar a bárbarie: de Peniche ao Museu da Tortura

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por Carina Martins

Memórias difíceis e traumáticas são muito delicadas para musealização, embora cada vez mais necessárias. Os museus de memória e de consciência são construídos na perspectiva do dever de memória como tarefa permanente para que “nunca mais aconteça”.

Moro em um país cujo presidente homenageia na Câmara de Deputados um dos maiores torturadores da Ditadura, e um dos únicos condenados. Este mesmo ser recebe no Palácio do Planalto, símbolo máximo da democracia e da república, um major responsável por tortura e massacre na Guerrilha do Araguaia. Tornou-se comum em nosso cotidiano ministros imitando nazistas, gestos de supremacia branca e homenagens recorrentes a torturadores contemporâneos vinculados às milícias.

A Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, afirma em seu artigo V que “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. A nossa Constituição reafirma tal compreensão, ao torná-la crime inafiançável e sem possibilidade de anistia. Mas, incrivelmente, defender publicamente a tortura é compreendido como liberdade de expressão.

Recentemente, voltei a dois lugares importantes para imaginações museais sobre Ditadura. O primeiro, o Forte de Peniche, hoje Museu Nacional Resistência e Liberdade. Originalmente uma fortaleza do século XVI, foi palco, ao longo de sua história, de encarceramento de presos políticos, até de brasileiros que participaram da Revolta da Armada, em 1894. Em plena ditadura salazarista, conhecida como Estado Novo, tornou-se “Depósito de Presos” em 1934 e, somente décadas depois, em 1974, foi encerrada nessa função. Com a Revolução dos Cravos, que deu fim a mais uma Ditadura portuguesa, a prisão odiosa acautelou, vejam que ironia, agentes da antiga polícia política. Uma desforra frente aqueles que certamente contribuíram de forma indelével para a tortura e as condições violentas a que foram submetidos centenas de presos.

Fortim Redondo no Museu Nacional Resistência e Liberdade em Peniche, Portugal. Foto: arquivo pessoal. 
Vista da Fortaleza de Peniche, Portugal. Foto: arquivo pessoal.

Para minha surpresa, ao pesquisar sobre o tema, li uma entrevista da historiadora Irene Pimentel na qual afirmava que não houve tortura na prisão porque não havia interrogatórios. Eu fico realmente espantada como a História precisa ainda mergulhar num debate ético-político. Então ficar isolado, não poder falar, cantar e assoviar, não poder compartilhar nada, ter seu corpo exposto a condições subumanas de umidade e frio, não é tortura? Ah tá.

Nessa visita, me impressionou o parlatório. Na foto, podemos ver a reprodução por meio de adesivos de orientações prisionais da época: “fale alto e apenas assuntos de família”. Consta que todas as conversas eram supervisionadas por guardas e interrompidas a qualquer momento caso o assunto se desvirtuasse do que consideravam adequado, para o preso ser submetido a castigos. É impressionante a arquitetura do controle: uma frieza, vidros dos pés ao teto, um branco emudecedor.

Parlatório do Museu Nacional Resistência e Liberdade. Foto: arquivo pessoal.

Soube em conversa com o funcionário que um hotel quase conseguiu fechar um empreendimento turístico, que visava aproveitar a linda vista de Peniche e atuar no segmento luxo. É impressionante como o capital aniquila memórias e quer se apropriar de tudo transformando uma prisão em produto, esterilizando memórias de dor e luta. Pela mobilização da sociedade civil, não foi adiante o projeto, ao contrário, em 2017 foi criado o Museu, que agora reivindica recursos para executar seu projeto.

O outro lugar que retornei é o livro “Soy loco por ti, América”, de Javier Arancibia Contreras (2016). Quando ganhei de presente, fiquei apaixonada na obra e dei outros exemplares para amigas, de tão impactada. Ao relê-lo, num contexto político muito pior, fiquei ainda mais estimulada com o Museu da Tortura do personagem William White, ou Will, ou Will.I.Am. Um artista que por muito tempo usou a arte urbana como expressão de suas inquietações e arregimentou corações e mentes na Inglaterra e Chile, em temporalidades distintas. É impossível escrever sobre o livro sem dar spoiler, então peço às/aos leitoras/es resignação.

Ao longo da leitura, um encontro fortuito entre Will e Piñedo desencadeia um arrepio mútuo, que culmina na invasão da casa do prestigiado artista. Com uma arma na mão, Piñedo quer decifrar quem é aquele homem que intuía conhecer e ambos se procuram na memória, em baús trancafiados por trajetórias subjetivas que tentaram, a seu modo, apagar o passado em comum. Em diálogos tensos e perspicazes, entendemos que torturador e torturado se encontram para um acerto de contas que transformaria a vida de ambos.

Ao subtrair o poder da arma e interpelar com coragem as técnicas de humilhação tão incrustradas no capitão (vejam, que coincidência…), Will o desafia a uma luta corporal, com a proposta de quem quer perder será submetido ao desejo do outro. O autor nos leva a mergulhos na memória e na dor, para então retornar ao angustiante combate, vencido pelo artista de forma simbólica e também literal.

Refeita da aceleração provocada, acompanho a narração dos cuidados zelosos a Piñedo, mantido prisioneiro e vendado. Por meses, o artista produz sua última série, grafitando e pintando todos os cômodos de sua casa. Ao final, vestiu-o com trajes de fantasia militar, tapou sua boca com fita adesiva e arrastou-o até o meio da sala. Ao longo de todo período, Will, agora já em transição para Santiago, seu verdadeiro nome, havia gravado depoimentos e testemunhos do capitão sobre a Ditadura, as torturas e a proteção que ainda gozava de poderosos, mesmo banido do Chile democrático.

Ligou a TV e o videocassete na fachada e foi embora, não antes de pichar, “Entre, Museu da Tortura” e o número 73 na porta de sua casa, pelo qual era identificado como prisioneiro político na ditadura chilena.

Escrevo sobre duas desforras museais, talvez mobilizando minhas esperanças (e profundo desejo) de que torturadores tenham o destino da humilhação permanente.

Que seus nomes sejam escrachados; que sua existência seja confrontada com as consequências de suas ações, em todos os âmbitos; que eles ou suas famílias percam todos os bens conquistados com os crimes cometidos; que sejam desempossados de qualquer homenagem pública, em nome, placa, medalha ou diploma; que nenhum livro de História traga seus nomes.

Que sejam derrotados, no imaginário, na política e, permanentemente, em nossos corações.

E termino com um pouco de poesia de Chico César

Cães danados do fascismo,

Babam e arreganham os dentes

Sai do ovo a serpente,

Fruto podre do cinismo.

(…)

Mas nós temos a pedrada para jogar,

A bola incendiária está no ar,

Fogo nos fascistas,

Fogo, jah

OBS: enquanto escrevo, o Ministério Público investiga a nomeação de um atirador esportivo como diretor-geral do Arquivo Nacional, órgão responsável pela memória nacional e por todos os arquivos da Ditadura Militar.

PARA SABER MAIS

CONTRERAS, Javier Arancibia. Soy loco por ti, América. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

Museu Nacional Resistência e Liberdade

Recomendações da Comissão Nacional da Verdade http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/Capitulo%2018.pdf

https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos

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