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“Os ferros da escravidão” e suas fotografias na revista Cruzeiro

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por Victor Hugo Martins

Figura 1
Figura 2

Figuras 1 e 2: Reportagem “Os Ferros da Escravidão”, Revista O Cruzeiro, 30/04/1949, Acervo Biblioteca Nacional

“Todavia a realidade nunca foi tão cruel quanto a prosa e a poesia”, escreve Gustavo Barroso no primeiro parágrafo do texto “Os ferros da escravidão”, na revista O Cruzeiro em 1949. O artigo se preza a divulgar o acervo de instrumentos de tortura do Museu Histórico Nacional, trazendo as aplicações de cada um, e buscando “justificá-los” em seus respectivos contextos.

A realidade de violência e opressão historicamente reforçadas pelos objetos (antes e após seu uso como suplício) tenta ser apagada pelo autor, explicando o uso de aparelhos que fechavam as bocas e restringiam movimentos corporais como não sendo tortura, e sim de uso médico. Mesmo aqueles itens cuja agressividade à integridade física é inegável, como os ferros de marcação, são tratados com eufemismos e termos apologéticos, transmitindo a culpa da represália às vítimas, escravizados chamados de “perigosos”, “fujões” e “viciados”.

A ideia da escravidão como purgatório, na qual se centra o texto, toma forma além da escrita, podendo ser percebida também nas imagens que a acompanham. A diagramação da primeira metade do texto dá enfoque claro às fotografias, com uma página inteira da revista dedicada à figura de uma mordaça, além de outras cinco fotografias que disputam espaço com três pequenas caixas de texto na primeira página.

O método de representação do acervo apresenta características similares entre as fotografias. Os itens do acervo são dispostos em frente a um plano de fundo claro, de acordo com o ângulo de melhor visibilidade de cada objeto e sem sombras, quando possível. A claridade do segundo plano gera um forte contraste, resultando em perdas de detalhes nos pontos mais escuros de cada objeto; causado possivelmente por restrições no equipamento ou no processo fotográfico.

Esta escolha, por mais que possivelmente acidental, traduz os preceitos principais do texto, trazendo não os detalhes da materialidade áspera e agressiva dos aparelhos (que remeteriam aos seus usos originais) mas sim celebrando os contornos plásticos e esculturais de cada um, transmutando cada ferramenta em uma obra de arte.

A estética das fotografias se aproxima do trabalho do fotógrafo Thomaz Farkas. O artista, nascido na Hungria em 1924 mas naturalizado brasileiro, foi um dos principais integrantes do movimento modernista da fotografia brasileira, e seu trabalho da década de 40 explorava contrastes, sombras, linhas e contornos nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Figura 3: Fotografia “Mirante do Trianon”, Thomaz Farkas, 1945, Acervo Instituto Moreira Salles

As fotografias dos “Ferros da escravidão” não atingem a escala urbana, mas aplicam muitos dos mesmos preceitos, gerando propositalmente apreço estético pelas formas dos aparelhos. A celebração da forma, que na obra de Thomaz Farkas poderia ser realizada por todos os integrantes da cidade, incluindo em seus quadros dançarinas de balé, trabalhadores aguardando em pontos de ônibus e jogadores de futebol na praia; fica, entretanto, restrita no trabalho de Gustavo Barroso para aqueles que perpetuaram o sistema escravista que produziu os instrumentos e os mantiveram no imaginário coletivo pós abolição.

A reportagem de Gustavo Barroso, utilizando de técnicas como a remoção dos objetos de seu contexto de uso e de exposição, além do uso de forte contraste nas imagens, manipula o leitor a analisar apenas o aspecto estético do conjunto. Juntamente com o texto, divulga a noção revisionista do período da escravidão, inserindo no imaginário popular ideais que somente perpetuariam o racismo e a culpabilização das vítimas deste mesmo sistema.

Estes princípios, divulgados pela gestão Gustavo Barroso desde a fundação do Museu Histórico Nacional, vêm sendo refutados com novas produções textuais e museográficas. Espero que, com esta análise e com as novas direções (e Direções) do MHN, estes conceitos desatualizados possam ser criticados e ressignificados nas escritas da instituição, permitindo que a tortura, a violência e opressão sejam tratados por todos como o verdadeiro inferno que são; não mais justificados ou celebrados, seja por diretores de museus ou por presidentes da República.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Gustavo. Os ferros da escravidão. Seção “Segredos e revelações da História do Brasil”. Revista O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 30 abr. 1949. p. 22-24, 88. Cadernos de recortes Gustavo Barroso, Biblioteca do MHN, v. 1, n. 60. Disponível em: http://www.docpro.com.br/mhn/bibliotecadigital.html.

BURGI, Sergio. Thomaz Farkas: uma antologia pessoal. Drops, São Paulo, ano 11, n. 043.06, Vitruvius, abr. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/11.043/3831>.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação. Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

Thomaz Farkas

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