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Personalidades negras e as casas históricas: exclusão, racismo e silenciamentos

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por Liane Bonzoumet¹

Democracia, direito à memória, visibilidades, invisibilidades são questões latentes na história contemporânea. O patrimônio cultural, compreendido como uma forma de escrita do passado, responsável por estabelecer e legitimar referência de identidade e sentimento de pertencimento para diferentes grupos sociais, vem sofrendo uma onda de contestação por diferentes segmentos da sociedade, especialmente pelos movimentos sociais, que lutam contra uma memória homogênea, construída e consolidada por meio de representações do passado, relacionadas a um ideário nacional, a partir de grandes acontecimentos que, via de regra, envolviam uma elite branca, masculina e católica que apesar de ainda ser majoritariamente retrata, não é mais tolerada.

Neste texto, farei um breve comentário acerca da representação da memória negra tendo como base as casas de personalidades históricas patrimonializadas no Estado do Rio de Janeiro. Marcus Ribeiro (2012) destaca que as casas históricas possuem uma importância fundamental pelo seu valor simbólico e pelo caráter evocativo que podem apresentar. “Não porque celebrem individualidades, mas por se relacionarem, como formas concretas, modelos de pensamento que inferiram na evolução da sociedade brasileira e que têm, em certos indivíduos, a sua forma mais acabada de verbalização ” (RIBEIRO, 2012 p.247). Apesar das questões arquitetônicas serem o principal pressuposto para a atribuição de valor para muitos desses imóveis, considerando a multiplicidade de memórias, presume-se a representatividade de diferentes grupos na seleção desses espaços. Durante minha dissertação de mestrado, tive a oportunidade de realizar um levantamento de todas as casas históricas tombadas no Estado do Rio de Janeiro. Dentre muitas invisibilidades, me detenho a comentar sobre a ausência de personalidades negras nomeando esses espaços.

Empretecer a memória do país que mais recebeu escravizados, especialmente na cidade que abrigou o principal local de chegada e comércio de negros escravizados no Brasil, consiste como uma das possíveis formas de reparação histórica. O dever de memória busca o reconhecimento da luta, dor e sofrimento, garantindo através da lembrança que determinados acontecimentos não sejam esquecidos e não se repitam. (HEYMANN, 2006). Nessa perspectiva, torna-se fundamental visibilizar as variadas experiências de personalidades negras que resistiram e, mesmo com as marcas da escravidão e do racismo na pele, se destacaram no campo da cultura, das artes, no âmbito da política e educação. Essas marcas, também são notórias no campo do patrimônio, neste caso, âmbito das casas históricas do Estado do Rio de Janeiro.

Considerando os tombamentos realizados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN (18), Instituto Estadual do Patrimônio Cultural – INEPAC (16) e no Instituto Rio Patrimônio da Humanidade – IRPH (15), o Rio de Janeiro possui o total de 49 imóveis vinculados à memória de personalidades históricas. Na esfera federal e estadual, nenhuma casa de personalidade histórica negra foi tombada. Já no âmbito municipal, o IRPH efetuou três imóveis: Duas casas que serviram de residência para o escritor Machado de Assis e a casa de dona Zica, sambista da escola de samba Estação Primeira de Mangueira e esposa do compositor Cartola.

Fotografia Machado De Assis Real/Reprodução
Fonte: https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/faculdade-colore-foto-de-machado-de-assis-para-lembrar-que-ele-era-negro/

Machado de Assis, um homem negro, identificado como branco por séculos, como mostra em seu obituário, em 1908. O escritor foi retratado erroneamente, fruto do racismo que jamais admitiria que um dos maiores escritores da literatura brasileira fosse negro. No ano de 2008, dois imóveis onde morou, na região central da cidade, foram tombados pela prefeitura.

Euzébia Silva do Nascimento, conhecida por Dona Zica, teve a casa onde morou, localizada no morro da Mangueira, subúrbio do Rio de Janeiro, patrimonializada pela prefeitura da cidade, após sua morte, no ano de 2003. Foi considerado que a sambista foi testemunha da fundação da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, sendo seu imóvel, reconhecido pelo seu valor para a história das escolas de samba, carnaval e cultura carioca. Spivak (2010), considera a mulher subalternizada, sujeito historicamente emudecido, numa posição ainda mais periférica, corolário aos problemas implícitos às questões de gênero. No caso da mulher, pobre e negra, a invisibilidade e marginalização é ainda maior. Nesse sentido, o tombamento do imóvel de Dona Zica é muito significativo, pois trata-se da atribuição de valor destinada a uma memória fora dos padrões estabelecidos, dentro do perfil de grupos silenciados.

Dona Zica. Fonte: https://catracalivre.com.br/samba-em-rede/dona-zica-matriarca-da-mangueira-e-idealizadora-do-zicartola/

Também é digno de nota, o tardio tombamento desses imóveis. Apenas nos anos 2000, foi inaugurada a atribuição de valor a personalidades negras através da patrimonialização de suas casas. A Constituição Federal de 1988, ampliou a noção de patrimônio cultural, reconhecendo a existência de bens de natureza material e imaterial. Desde então, grupos subalternizados, indígenas, negros, mulheres, constantemente silenciados, através da permanente luta dos movimentos sociais, conquistaram espaço na patrimonialização de bens, especialmente de natureza imaterial. Entretanto, no que tange ao patrimônio material edificado, especialmente as casas históricas, com raras exceções, a diversidade e pluralidade cultural brasileira tem sido negligenciada e tais espaços ainda simbolizam locais da hegemonia e representação das elites.

Apesar do conhecimento das diferentes estratégias para construção dos silêncios que envolvem a memória negra e, reconhecer e valorizar todo o trabalho engendrado pelos movimentos sociais, quantificar esses imóveis e apresentar um número tão ínfimo, ratifica a urgência de novas intervenções no campo do patrimônio. A memória de intelectuais, artistas dentre outras personalidades negras, precisam ser lembradas, estudadas, celebradas e patrimonializadas.

Em 2019, o samba da Mangueira trouxe para Marques de Sapucaí “ A história que a história não conta”, ou pelo menos não contava, lembrando personalidades negras como Dandara dos Palmares, Francisco José do Nascimento – O dragão do mar, Luísa Mahin, Marielle Franco, “Lecis e Jamelões”, penso também em alguns outros nomes importantes, como: Tereza de Benguela, Carolina Maria de Jesus, Antonieta de Barros, Maria Firmina dos Reis, Ruth de Souza , Maria de Lurdes Vale Nascimento, Clara Nunes, Zumbi dos Palmares, Donga, Pixinguinha, João da Baiana, Eduardo das Neves, Bezerra da Silva, André Rebouças, Luis Gama, Nilo Peçanha, , Abdias do Nascimento, João Cândido Ferreira, Solano Trindade, Heitor dos Prazeres, Patrício Teixeira, Tranquilino Barros, Moiséis Zacharias, Antônio Candeia, Hemetério José dos Santos, Grande Otelo, Cruz e Souza, José do Patrocínio, homens e mulheres que lutaram contra o preconceito, resistiram, se destacaram em diferentes saberes, porém nem sempre são lembrados como deveriam.

O patrimônio também conta uma história. As questões que permeiam o campo não são neutras nem imparciais, mas determinadas por um processo histórico, político e ideológico. A escravidão e o racismo estão presentes nos processos de construção de memórias, envolvendo disputas, apagamentos, diferentes formas de uso e manipulações. Problematizar quais lugares, grupos e pessoas estão sendo lembrados e esquecidos a partir de uma perspectiva interseccional, contestar, ressignificar é um exercício fundamental para constatar e combater a exclusão de algumas pessoas como sujeitos da história.

¹Historiadora, mestre em História Social (PPGH/UNIRIO), professora da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Martha et al. Cultura Negra vol.2: trajetórias e lutas de intelectuais negros. Niterói: Eduff, 2018.

BONZOUMET, Liane Campos. De amnésia á anamnese: patrimônio, memória e esquecimento no último esconderijo de Olga Benário. Dissertação de mestrado – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em História, Rio de Janeiro, 2021.

HEYMANN, L. O”devoir de mémoire” na França contemporânea: entre a memória, história, legislação e direitos. CPDOC, Rio de Janeiro, p. 1-26, 2006.

RIBEIRO, Marcus. Entre o ser e o coletivo: o tombamento das casas históricas. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Brasília, n. 34, p. 223-247, 2012.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.

IMAGENS

Machado de Assis: Disponível em: https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/faculdade-colore-foto-de-machado-de-assis-para-lembrar-que-ele-era-negro/ Acesso em: 25 de setembro de 2021.

Dona Zica: Disponível em: https://catracalivre.com.br/samba-em-rede/dona-zica-matriarca-da-mangueira-e-idealizadora-do-zicartola/ Acesso em: 25 de setembro de 2021.

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