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Fazedor de barcos e achados

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por Ana Lourdes Costa

Conforme Walter Benjamin “Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação”¹. Mas essa é uma história surpreendente e, por assim ser, precisa de pouca ou nenhuma explicação, precisa apenas ser narrada. Com trechos em primeira pessoa.

Também nos fala Manoel de Barros, em um dos seus poemas, “que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem com barômetros, etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós”². E talvez tenha sido exatamente encantamento o que sentiu o Sr. Sebastião Mafra ao entrar na reserva técnica do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, em 1998.

Já havia mais de vinte anos que seu Sebastiãozinho trabalhava no MHN na função de restaurador de peças do acervo. E somente naquele dia ele achou, mesmo sem procurar, algo que fez parte das suas lembranças durante muitos anos. E é aqui que começa essa narrativa, feita de dois personagens – seu Sebastião e um barco pagador de promessa, um ex-voto.

Seu Sebastião nasceu nos idos dos anos 1930 em Manacapurú, às margens do rio Amazonas. Mas não passou toda a vida em sua cidade natal. Ainda na adolescência, quando “os dias corriam tranquilos”, ele mudou-se com sua família, um total de dez pessoas, para uma cidade do interior.

“Era um lugar ermo. Nossos vizinhos mais próximos encontravam-se a meio quilômetro de distância. Por outro lado, havia peixes e caça em fartura”. E segue contando seu Sebastiãozinho que todos até então não tinham problemas com a saúde e que “ai de quem ficasse doente; a existência de um médico por ali, apenas em sonho mesmo seria possível. O ‘médico’ era um curandeiro nativo que evocava espíritos. Os remédios, folhas medicinais tiradas da mata ao redor”. Foi quando uma irmã mais nova ficou gravemente doente. Como a doença aumentava de intensidade e nada parecia resolver a situação, a mãe da criança, devota de São Francisco, clamou por socorro a seu santo de devoção, fazendo uma promessa: “São Francisco do Canindé! Se fizeres minha filha ficar curada, eu prometo: mando fazer um barco, coloco dinheiro e dois maços de vela, solto na água do rio até chegar ao seu santuário no Ceará!”.

O milagre foi atendido e seu Sebastião foi o fazedor do barco que terminaria de cumprir a promessa. Assim pagariam ao santo o benefício alcançado. Lembra ele, que cuidou “especialmente da segurança, vedando a área destinada ao convés para que não houvesse penetração de água no porão, local onde estariam o dinheiro e as velas. O pequeno barco em madeira policromada, apresentava na proa de cada lado uma inscrição em negro: ‘São Francisco de Canindé’. Na parte superior (convés), em lata pintada de vermelho com janelas brancas, tendo um desenho da bandeira brasileira. Ali colocou-se a seguinte inscrição:

‘São Francisco de Canindé’
Pede-se à pessoa que encontrar esse barco na beira do rio
o favor de por para o meio.
Graça alcançada deste grande Santo.
Manaus 29-09-1954”

Representação do barco ex-voto, em analogia a um barquinho que carregaria em seu papel a história e as memórias narradas por sr. Sebastião. Arte por: Sofia Carneiro e Alice Mello.

Rememora, ainda, seu Sebastião: “numa bela tarde, com o horizonte colorido pelo crepúsculo daquele 29 de setembro de 1954, pegamos uma canoa para fazermos o transporte do pequeno barco até o meio do rio. Cerimoniosamente, colocamos nossa oferta sobre a água e observamos seu deslizar ao sabor da correnteza”. E conta, ainda, que muitos dos que ali estavam duvidaram da possibilidade do barco completar o seu trajeto até o Ceará.

Se alguém empurrou o barco para o meio do rio ou se ele seguiu direto seu rumo, provavelmente nunca se saberá. Voltando ao início dessa história, numa de suas idas à reserva técnica do MHN, seu Sebastião percebeu, sobre uma mesa, em meio a outras peças separadas para limpeza e conservação, uma estrutura que lhe pareceu familiar: “Saltaram-me à lembrança detalhes há muito deixados de lado e, ponto a ponto, foram se confirmando: as inscrições, a pintura e as cores”. Ali estava o barco feito por ele décadas atrás, musealizado, registrado e pertencente ao acervo de obras sacras do MHN.

Interessante notar que seu Sebastião e o barco faziam parte da mesma instituição, mas tendo trilhado, de formas diversas, cada um até ali, muito caminhos. No Rio de Janeiro, seu Sebastião chegou trabalhando, em 1963, na restauração das peças de um museu de folclore, virou artista plástico, participou de exposições e se aposentou como restaurador do Museu Histórico Nacional, onde fez parte da equipe que restaurou belas carruagens e realizou outras descobertas (mas essa é outra história)³. O barco (ex-voto) saiu do norte do país por um rio, chegou ao Ceará e entrou no acervo da instituição em 27 de dezembro de 1955, levado por Gustavo Barroso, primeiro diretor do MHN, tendo como procedência: oferta dos frades franciscanos da Igreja de São Francisco do Canindé – Ceará (Sala dos Milagres).

 

 

¹BENJAMIN, Walter. O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Walter Benjamin: Obras escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política . São Paulo: Brasiliense. 1994, p.203.

²BARROS, Manoel de. Sobre Importâncias in Memórias Inventadas – As infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Editora Planeta do Brasil. 2010, p. 107.

³Sobre o trabalho de restauração das carruagens, ler Do Móvel ao Automóvel: Transitando pela História. GUEDES, Angela Cardoso e FERNANDES, Lia Silvia Peres. 2009.

 

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