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O patrimônio como ponte: uma memória e a Estação Areal

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por Sofia Carneiro

“… Eu me lembro que quando passei em Cascatinha [bairro de Petrópolis], meu pai abriu a janelinha do trem, era noite, e disse ‘olha Mena, parece um céu estrelado’… Nunca mais me esqueci disso…”

Comecei a escrever esse texto em algum dia de outubro de 2021 e não dei continuidade, ficou parado. Termino ele em maio de 2022 com muita coisa diferente do que era antes. Essas são memórias de infância da minha avó Filomena. Essa é uma das muitas histórias contadas por ela e por meu avô para seus mais de 10 netos e netas enquanto crescíamos. Essa memória tem um cenário, um contexto e uma data. É da minha avó, nascida em uma fazenda próxima ao município de Areal e São José do Vale do Rio Preto, que se mudou anos mais tarde para a cidade de Areal grávida de sua filha mais nova, minha mãe. Essa lembrança tem dois lugares e um entre-lugar, é o trajeto Petrópolis-Areal, um percurso que há bastante tempo também é feito por mim. Até hoje as luzes acesas das casas de Cascatinha parecem um céu estrelado à noite. Hoje provavelmente são mais… Essa é uma memória de três linhas. É um recorte de segundos, tempo suficiente que se divide em três: o da própria história; o presente em que escuto ela contar e o terceiro tempo, que é criado na minha própria imaginação junto com imagens e perguntas, enquanto acompanho suas palavras.

Em Areal, cidade em que nasci e morei até os 16 anos, existe uma ruína de uma estação de trem, uma dessas que fazem parte do trajeto da memória da minha avó. Suas ruínas foram a primeira imagem que me veio à cabeça quando uma vez, já no curso de Arquitetura e Urbanismo e estudando a temática do patrimônio, me perguntei qual seria um patrimônio da minha cidade. Esse tema despertou em mim uma inquietação já antiga, de tempos de criança: “não sei nada sobre essa estação”; e outra, nova e desconhecida até ali: “o que me leva assimilar a palavra patrimônio com a imagem dessa ruína que de-quase-nada-sei?”

A estação, anos 1960. Cessão Rodrigo Martins de Oliveira.
Fonte: http://www.estacoesferroviarias.com.br/
A estação, anos 1930. Cessão Rodrigo Martins de Oliveira.
Fonte: http://www.estacoesferroviarias.com.br/

O patrimônio era um assunto de interesse para mim, mas uma novidade também. O curso todo era uma novidade, não sabia que existiam tantos caminhos dentro da arquitetura e do urbanismo. Percebi que o patrimônio era esse campo que criava inquietações, e mais que isso, era em si mesmo feito de inquietações. É uma noção acompanhada de várias definições, interpretações. É dialógico e está vivo, logo é contestado, disputado e se refrata. Talvez tradicionalmente esse conceito esteja ligado à ideia de bens familiares, heranças econômicas ou culturais. Fato é que, ao longo do tempo, a noção de patrimônio vem passando por um alargamento de sentidos, ganhando expressão principalmente na esfera sociocultural, se combinando, assim, a outras palavras como “histórico”, “cultural”, “natural”, “da humanidade”… Em todos esses sentidos e campos disciplinares que ele alcança, o que mais me toca é perceber que o patrimônio pode ser compreendido como instrumento de mediação. Nas palavras de Mário Chagas:

(…)Para além de suas possíveis serventias políticas e científicas, museu e patrimônio são dispositivos narrativos, servem para contar histórias, para fazer a mediação entre diferentes tempos, pessoas e grupos. É nesse sentido que se pode dizer que eles são pontes, janelas ou portas poéticas que servem para comunicar e, portanto, nos humanizar. (CHAGAS, 2003)

Essa perspectiva do patrimônio como dispositivo narrativo e mediador me encantou. Foi quando fez sentido porque me levou para perto das histórias dos meus avós. Nela parece haver uma faísca, é capaz de aproximar e comunicar as memórias e os afetos, é a possibilidade de humanizar e proliferar. Pontes, janelas ou portas poéticas, quem sabe até “trajetos”… Algo que conecta e possibilita o diálogo entre o campo patrimonial e as discussões relacionadas à cidadania, educação, identidade e cultura de um indivíduo e uma comunidade – discussões caras e urgentes em um tempo contemporâneo marcado por discursos e práticas intolerantes e negacionistas.

Retorno, então, à Estação Areal. Sempre conheci aquela construção central no começo da rua Manoel Fernandes no estado de ruínas. Da minha infância para cá, deram início a uma obra de restauração em 2012 que visava a criação de um centro cultural naquele espaço, mas nunca foi finalizada. Não há registros nos restos daquela construção que falem sobre sua história… O que eu sabia dela, quando era criança, era que por ali passava um trem que há muito tempo não passava mais. Algum adulto chegou a se aprofundar um pouco mais na explicação e disse, uma vez, que essa linha vinha do Rio de Janeiro. Mas o maior contato que tive com a história dessa estação veio das conversas com meus avós, são conversas que partem da memória afetiva, tem a dança dos três tempos. Tem a risada do meu avô quando conta das andanças do avô dele, tem o brilho e o sorriso da minha avó quando fala do pai e daquela viagem… E tem a minha imaginação percorrendo aquele trem que não ouvi apitar, o rosto do bisavô que não conheci e os olhos de criança curiosa que um dia minha avó foi. Pela lembrança dela entendi pela primeira vez, quando criança, a dimensão daquela linha de trem que vinha do Rio e passava por Petrópolis. Pude imaginar o trajeto sem nunca ter ido ao Rio de Janeiro, ouvir os sons e visualizar a paisagem.

Início das obras em 2012. Foto de Carlos Latuff. Fonte: http://otremexpresso.blogspot.com/
Obra inacabada: Estação Areal, 2017. Foto de Alex Medeiros. Fonte: http://www.estacoesferroviarias.com.br/

 

De todas as coisas, construções, paisagens e festas que podem contar a história de Areal, a que tem maior significado para mim surge através da memória afetiva narrada. Esse parece ser o sentido mediador poético de patrimônio referido anteriormente, que é capaz de trazer para o encontro os três tempos. É também uma forma de se desenvolver o sentimento de pertencimento e de identidade e a partir dele pensar os seus desdobramentos tanto na esfera individual quanto, e principalmente, na coletiva… Janelas que geram debate, inquietações, contestações e apropriações da história e do patrimônio; que permitem imaginar e criar transformações na sociedade. Me pergunto quais outros lugares, imagens e memórias da minha cidade moram nas narrativas familiares de outros moradores. O que tudo isso diz da construção subjetiva dessa cidade, da sua existência e das suas possibilidades futuras? Quais janelas e perspectivas se abrem a partir de uma memória pessoal para a escala coletiva? A Estação Areal tem sua marca e sua importância na história da cidade, e por trás dela diversas vozes, rostos e histórias, como as de minha avó. Conhecê-las, ouvi-las, e criar espaço para o diálogo e a troca de memórias pode ser a forma mais potente de se conhecer a história de um patrimônio e de uma cidade.

Para a vó e o vô, que partiram em abril desse ano.

REFERÊNCIAS

CHAGAS, Mario. Educação, museu e patrimônio: tensão, devoração e adjetivação. In TOLENTINO, Átila B. (org.). Educação patrimonial: educação, memórias e identidades. Caderno Temático de Educação Patrimonial nº 03. João Pessoa: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2013, pp 1-7, 2013.

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