Maré de Transgressões: um diálogo entre a Educação Patrimonial e a Educação Básica
por Marcus Vieira
Isso aqui é comunidade?, pergunta preocupado o motorista de aplicativo ao entrar na rua onde está localizado o Museu da Maré. Pensei o quanto a vulnerabilidade à violência no Rio de Janeiro impede a população de ampliar a visão de favela e compreender que ali é um lugar de culturas e de memórias. Nessas condições, o desafio dentro da área de educação patrimonial se torna ainda mais difícil. Não parecia, mas o motorista e eu já estávamos dentro de um patrimônio não aprisionado nos muros e edifícios clássicos. Mesmo com a ampliação do conceito de patrimônio nas décadas de 70 e 80 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), grande parte da população brasileira ainda não se libertou da velha concepção de museu.
Se essa visita fosse há algum tempo, eu duvidaria de um museu sediado fora dos prédios suntuosos. Afinal, museu precisava estar cercado por muros nobres, decorado com estátuas oficiais gigantescas, aprisionados no silêncio e na obediência daqueles visitantes calados. Era chato? Sim! Mas era “chique” dizer que foi ao museu que reproduzia opressoras relações de poder.
O Museu da Maré foi inaugurado em 2006. Fundado pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), o espaço propõe apresentar um Rio de Janeiro que vai além dos cartões postais da Zona Sul, promovendo narrativas que incluam as camadas populares no protagonismo e ressignificando a noção de museu. Ao reinventar a ideia de educação patrimonial, o museu é construído em diálogo constante com a comunidade local, contando a vida daqueles que moram na região e conduzido pelos próprios moradores.
Cheguei no museu antes do horário de abertura. No tempo que fiquei esperando o espaço abrir, lembrei dos museus já visitados. Inúmeras vezes tive em Petrópolis, por exemplo, e me deparava com a linda fachada do Museu Imperial. Como educador, levava meus alunos para uma História narrada pelas autoridades e simbolicamente silenciada pelas pantufas que tinham o objetivo de preservar o espaço e manter o silêncio. Era o museu em diálogo com a escola, onde ambos reproduziam espaços de poder, muros de silêncio e hierarquias intocáveis, onde o aluno era mero expectador dentro de um processo vertical de ensino-aprendizagem. E eu, agente e vítima daquela situação.
Dona Vera e Tamires, moradores da Maré e funcionárias do museu, abriram o portão. Mas antes de entrarmos, elas foram paradas por um morador que perguntou se ali alugavam livros. Tamires respondeu: sim, fazemos empréstimos de livros. Eu estava apaixonado pelo museu antes mesmo de entrar, ainda na rua. A visão ampliada de museu para além dos muros e o diálogo com a comunidade local nos ajuda a repensar nosso papel como professor de História: a educação patrimonial pode dialogar com a sala de aula nessa perspectiva decolonial. Dona Vera, dona de um delicioso café, e Tamires, guia do museu, trabalham dentro de um espaço onde a maior parte dos funcionários são moradores da comunidade. Inclusive as duas são moradoras da Maré. Ao tomar o café gratuito e não “goumertizado” da Dona Vera pensei que mesmo as experiências mais inovadoras que vivenciei, como o Museu da Memória e dos Direitos Humanos no Chile ou qualquer exposição de valorização da cultura indígena e africana dentro dos tradicionais museus brasileiros, eram produções que ouviam populações historicamente subjugadas, mas que foram construídas de cima para baixo, pelo poder público, por autoridades, por mais importante que fosse aquela escolha.
A proposta decolonial não é descolonizar, mas transgredir, segundo Catherine Walsh, grande estudiosa da Educação Patrimonial Decolonial. Nessa perspectiva, o museu da Maré não apresenta apenas uma narrativa sobre os povos “não-coloniais”: ele é narrado por essas pessoas, construído por elas e está em eterna construção. Deve-se ressaltar que a ampliação do conceito de patrimônio cultural pelo IPHAN nos anos 70/80, ou qualquer ação das autoridades dentro do campo da Museologia Social, são consequências das lutas dos movimentos sociais. Mas ainda é preciso muito mais. É importante conhecer espaços que nos aproximam da História e que também podem aproximar nossos alunos da sua História. A tradicional relação vertical, que faz do visitante um expectador de uma narrativa oficial, elitista e acabada, tornava o museu o espaço de um silêncio que acabou contribuindo para a sua decadência dentro de um país não contemplado com as políticas públicas necessárias.
O museu da Maré concretiza a ampliação do conceito de patrimônio. É também a possibilidade que enxerguei para ampliar o conceito de História e as suas narrativas. A Base Nacional Curricular Comum e uma série de políticas públicas já propõem um caminho diferente para o Ensino de História nas salas de aula. Mas encontrar um museu que soma nessa ação e torna lúdico esse tipo de aprendizado é essencial dentro de uma escolha de educação para a cidadania.
Visitei o museu numa quinta-feira, 07 de abril, e encontrei funcionários entusiasmados com a retomada da visitação das escolas, proporcionado pelo contexto favorável da pandemia naquele momento. Naquele dia haveria visita noturna, o que me deixou surpreso. O museu, se necessário, abre suas portas de noite para contemplar alunos que só podem estudar nesse turno e unidades escolares que não funcionam de manhã e de tarde. Achei a ação maravilhosa! Além disso, havia uma peça teatral em cartaz nos finais de semana, ampliando o diálogo com a população local, estendendo suas ações enquanto museu e diversificando suas práticas dentro do campo da Educação Patrimonial.
A palavra Maré refere-se aos mangues e praias que dominavam a paisagem dessa região que margeia a Baía de Guanabara. Sua ocupação foi intensificada com a criação da Avenida Brasil na década de 1940. O museu da Maré está sediado dentro de um galpão abandonado no contexto de crise econômica da década de 80.
O museu é dividido em tempos temáticos: água, casa, migração, resistência, trabalho, festa, feira, fé, cotidiano, criança, medo e futuro. Senti falta de legendas nas imagens ou de fones para explicar as fotografias. Ao mesmo tempo, entendo que tudo isso requer investimento. Por outro lado, a organização em tempos temáticos problematiza o ensino de História e a própria concepção de museu tradicional que privilegia uma periodização cronológica e pautada pela política nacional. O diálogo com a História local permite que o professor estabeleça relações com a História do Brasil. Trazer o currículo para próximo do aluno é de suma importância na busca por resultados concretos na aprendizagem e na redução da evasão escolar.
A oferta de oficinas (música, teatro, capoeira, entre outros) desafia o silêncio tão cultivado durante séculos nos museus pomposos e nada dialéticos. Um exemplo é o Chá de Memórias, momento em que diferentes gerações se encontram em torno de um objeto doado por um morador, permitindo intenso diálogo sobre as memórias apresentadas.
Viajar entre os “tempos da Maré” é uma passagem pela História do Brasil e o professor pode encontrar material potente para fazer esse paralelo com o currículo obrigatório, além de ser um estímulo para a realização de atividades lúdicas na sala de aula. Viajar pela Maré é potencializar a lei 11.645/2008, que regulamenta o ensino da História e da cultura africana, afro-brasileira e indígena na educação básica do Brasil. A narrativa das populações historicamente oprimidas está presente do início ao fim no museu: os moradores da Maré carregam a História das mulheres, dos escravizados e dos povos que ainda precisam de reparos nas feridas provocadas ao longo dos séculos, não apenas dentro de uma perspectiva de pobreza, mas promovendo as riquezas culturais carregadas por aquela gente.
Foi emocionante conhecer a réplica de uma casa de palafita, reproduzida no museu, e viajar nos detalhes de cada objeto original. No “tempo de Festa”, senti falta de uma fotografia que representasse o funk, tão presente na comunidade hoje em dia. Já que o museu está em permanente construção, sugeri que apresentassem a proposta aos estudantes que visitariam o espaço naquela noite: que tal contribuírem com imagens de festas que frequentam na atualidade? Como a pandemia restringiu o diálogo, agora temos uma excelente oportunidade de enriquecer aquele material tão valoroso que foi reunido antes mesmo da fundação do museu.
O sincretismo religioso presente no “Tempo de fé” é mais uma oportunidade para o docente dialogar com a História do Brasil e desenvolver ações pela tolerância religiosa dentro de um país ainda pautado pela violação da laicidade do Estado.
O momento mais marcante, enquanto professor de História, foi conhecer o “Tempo de Criança”. Expor os objetos de crianças da Maré no chão e pendurar quadros na altura da criança simbolicamente inovam no papel que esse jovem tem dentro de um museu: o diálogo se torna horizontal e a criança se torna um agente histórico. Isso é extremamente importante para pensarmos como é importante promover o protagonismo juvenil também dentro da sala de aula.
No “Tempo do Medo”, me deparei com a exposição de projéteis recolhidos nos diversos conflitos na comunidade. Um misto de sentimentos tomou conta de mim. Parecia apelativo expor aquilo para crianças. Será? Logo em seguida, pensei: silenciar nunca foi a solução! Poderia ser chocante dentro da minha posição privilegiada de branco de classe média que nunca morou em favela. Mas é comum para aquela criança que vivencia aquele terror diariamente. Por que, enquanto professor de História, nunca me choquei com exposições nos velhos museus e com estátuas que expõem armas de colonizadores e exaltam o processo de dominação?
O “Tempo de futuro” finaliza o trajeto das exposições permanentes com uma sala em branco. Justamente dialogando com a ideia de museu em construção. O espaço escolar também pode ser local da construção de futuros a partir das reflexões sobre o passado. Naquela sala branca e vazia, apenas a porta do gabinete da vereadora Marielle Franco decora o espaço. Uma mulher negra brutalmente assassinada. Um ataque à democracia. Mas a porta representa a esperança de que, através da política, novas “Marielles” podem fazer a diferença. Museu e Escola podem ser parceiras nessa Educação Patrimonial que acredita no diálogo como semente da mudança.
Finalizando essa experiência singular, conheci o caderno pedagógico que foi preparado para estudantes. Não poderia ser diferente daquilo que o museu apresentava e daquilo que o professor de História pode exercer. Informar dialogando e construir em parceria: protagonismo do jovem através de ações lúdicas, onde ele é o condutor e permanente “construtor” de memórias, reforçando a ideia de pertencimento e fortalecendo identidades. Esse também é o papel da escola dentro da perspectiva da Educação Patrimonial e, por isso, escola e museu precisam andar de mãos dadas. O material transita nos variados gêneros textuais, como a utilização de música popular, por exemplo. O material possibilita ações multidisciplinares e interdisciplinares. O estudante se torna detetive, investigador, pesquisador, produtor de narrativas e saberes. Uma educação não apenas cognitiva, mas promotora da cidadania.
Não sei se há qualquer ação da Prefeitura ou do governo do Estado do Rio de Janeiro para fomentar a relação do museu com as escolas públicas da região, mas vi que muito do que acontece é resultado da resistência dos moradores e dos professores. Talvez isso seja próprio da Museologia Social: o embate eterno com o poder público.
O museu da Maré representa uma proposta de educação patrimonial que permite o conhecimento de narrativas escritas por moradores, onde eles são os protagonistas das suas histórias, ressignificando a ideia de museu como um espaço de diálogo em constante construção, à serviço do empoderamento de determinados grupos sociais.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO Helena Maria Marques. Museu da Maré: entre educação, memórias e identidades. Rio de Janeiro: Puc-Rio (Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da PUC-Rio), 2012
CADERNO DO IPHAN: Educação Patrimonial: Histórico, conceitos e processos. IPHAN. 2014
COSTA, Carina Martins. Maré de Histórias. Rio de Janeiro: Rede Editora Gráfica, 2019.
GONÇALVES, Janice. Da Educação do Público à Participação Cidadã: Sobre Ações Educativas e Patrimônio Cultural. Revista Mouseion. Canoas, Unilasalle,n.18, dezembro de 2014.
TOLENTINO, Átila Bezerra. Educação Patrimonial Decolonial: Perspectivas e Entraves nas Práticas de Patrimonizalização Federal. Sillogés – v.1, n.1, jan./jul. 2018.
WALSH, Catherine. Interculturalidad, Estado e Sociedad: luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar/ Ediciones Abya-Yala, 2009.
Que artigo lindo! Adorei conhecer um pouco mais da história desse museu incrível. Já quero conhecer! 🙂
Vale muito a pena conhecer o Museu da Maré, Luana! Ficamos felizes que o artigo tenha te inspirado. 🙂