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Sangrar o monumento, encantar a alma e lutar por justiça

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por Carina Martins

“Que dirá a seu filho, o pai?

Que dirá para a filha, a mãe?

Que virá dessa escuridão?

Será bem, será maldição?”

Milton Nascimento, nosso rei negro, lançou em 1990 um álbum chamado “Txai”, que tenho revisitado estes dias. É uma joia, mais uma, no tesouro musical que o cantor, compositor e multi-instrumentista nos legou. Recentemente, estive em um dos últimos shows de Milton que se despede dos palcos e lembrei de uma música chamada “Que virá dessa escuridão?”. E me pergunto, todos os dias, a mesma coisa.

Ontem foi o velório e a cremação de Bruno Pereira, considerado um dos mais importantes indigenistas de nossa geração. Impossível ver as homenagens dos Xukuru e não se emocionar: “Oh meu irmão, oh irmão meu, cadê meu irmão que não vem brincar mais eu?” . Marcos Xukuru lembrou que agora Bruno vive em cada um deles, pois se tornou encantado de luz, “em cada um de nós, pois é dele que nos alimentamos”.

Bruno travou a boa luta. Seu corpo foi profanado. Atiraram, esquartejaram, queimaram e enterraram. A mando de quem? A polícia federal, assim, em minúscula mesmo, concluiu que foram alguns homens pé-rapados que planejaram, executaram e ocultaram os cadáveres. Uma barbárie dessa envergadura é algo que nos dimensiona o grau de nossa escuridão. Como iremos reacender as lamparinas dentro de nós, se no mesmo dia de seu velório, abro as redes sociais e vejo corpos de adolescentes Guarani-Mbyá perfurados em mais um ataque da polícia militar e seguranças privadas do agroépop? Hoje leio nos jornais que houve confronto. Sei. Ao invés de proteger a retomada de terras ancestrais, eles violentam crianças e mulheres.

No meio de tantas emoções angustiantes, vejo uma fotografia de um ato dos Guarani no Monumento das Bandeiras, em São Paulo. Eles sangraram o monumento com faixas vermelhas e subiram nos cavalos com bandeira “Jaraguá é guarani”, proclamando que o Brasil é terra indígena, território sagrado. Na defesa de justiça para Bruno e Dom, evocam a luta mais importante e crucial para seus destinos (e de todos nós): o julgamento do Marco Temporal no STF. Em síntese, o tribunal julgará se as terras indígenas são direitos originários imprescritíveis ou reconhecidos a partir da posse no momento de promulgação da Constituição de 1988. Conforme aponta Eloy Terena (advogado indígena nascido em 1988, vejam só), “a constituição é clara em reconhecer o direito originário e estabelece requisitos de tradicionalidade”. É preciso derrubar a tese do marco temporal, que implicaria no aprofundamento de violência em mais de 800 territórios indígenas. Vocês podem imaginar quem está ao lado dessa manobra legal de marco temporal. Adiado inúmeras vezes, sem data de votação prevista, o julgamento não retomado amplia o abismo entre direitos e realidade. Neste caso, não adia o fim do mundo, nem o suspende, mas torna a barbárie mais cotidiana.

O movimento indígena pede o afastamento de Marcelo Augusto Xavier da presidência da Funai. | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo. Indígenas Guarani realizam ato contra marco temporal e cobram justiça para Dom e Bruno em SP – Ponte Jornalismo

Que o monumento às bandeiras seja sangrado todos os dias, na materialidade, na memória e na violência que representa.

Em tempos em que o conceito “decolonial” habita nos discursos acadêmicos ainda com sotaque português e britânico, fico pensando em quanto desconhecemos nossas histórias, formas de narrar, patrimonializar e encantar a vida.

Eu, aqui, ouço os cantos e pauso. Leio os filósofos indígenas e me inspiro. Celebro a vida de Bruno e aplaudo. Me curo com medicinas e me conecto.

Porque o óbvio está aí, podemos falar as mesmas palavras, podemos pisar o mesmo chão, mas sem o corpo inteiro não percorreremos nunca a trilha em comum com nossos irmãos.

“Será bem, será maldição?” Que essa escuridão também nos faça abandonar as bússolas que nos guiaram até aqui e nos jogar de corpo e alma para outras formas de imaginar nossa presença em coletividade, conexão e respeito.

PARA SABER MAIS

Sobre o julgamento do Marco Temporal: https://apiboficial.org/2022/03/30/eloy-terena-coordenador-juridico-da-apib-faz-sustentacao-oral-no-stf/

Velório de Bruno Pereira, Amazônia real: https://www.youtube.com/watch?v=T0kgwzAHCcs

Diga não ao marco temporal: https://www.greenpeace.org.br/marco-temporal-nao/

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