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Orgulho: pela existência, memórias e museologia plural

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por Joyce Rodrigues

Quando se aproxima o dia 28 de junho, somos bombardeadas em nossas redes sociais com uma timeline colorida, propagandas e apropriações de empresas vibrando nas cores do arco-íris em comemoração ao Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+. Mas por que junho é o mês da diversidade? No contexto da homossexualidade ser considerada crime e doença, logo, alvo de ataques policiais e da sociedade cisheteronormativa, na madrugada de 28 de junho de 1969 deflagrou-se a “Revolta de Stonewall”, na cidade de Nova York (EUA). Dentro da lógica do que é permitido e proibido, o espaço privado se conformou como o lugar que podemos ser quem somos. Alguns bares e clubes da época tornaram-se refúgio: o bar Stonewall In, em funcionamento até os dias atuais, atraía o público LGBTQIA+ e foi o local onde a polícia foi realizar vistorias. Cansados da opressão cotidiana estatal, manifestantes ocuparam as ruas com cartazes e confrontos violentos pediam o fim da violência contra a comunidade LGBTQIA+, transformando-se em uma rebelião marco do movimento.

Em contrapartida, quando deslocamos o olhar para o sul do globo, o Brasil enfrentava a Ditadura Militar (1964-1985), regime autoritário que durou 21 anos marcado por perseguições, censuras, torturas, mortes de milhares de pessoas e perdas de direitos civis, deixando como consequências o aprofundamento das desigualdades econômicas, políticas e sociais. Entre comunistas, militantes, negras/os, mulheres, indígenas e tantos outros que se opusessem contra o regime, a comunidade LGBTQIA+ era um alvo. Torturas, prisões e execuções eram via de regra, como exemplos a “Operação Sapatão” em 1980, “Operação Tarântula” entre 1980 e 1985, ambas no estado de São Paulo, organizadas pela Polícia Militar com o objetivo de promover a marginalização, a perseguição e a morte de mulheres lésbicas, trans e travestis.

 

Imagem 1: Manifestantes na Revolta de Stonewall. Foto: Domínio Público.
Imagem 2: Manifestação pública pioneira de LGBT no Brasil contra a violência policial durante a ditadura. Foto: Cezar Xavier (Vermelho/ORG)

É humanamente impossível uma ação acontecer e se manter estática sem nenhum movimento ao redor ocorrer. Nas aulas de física, por meio das Leis de Newton, aprendemos que toda ação tem uma reação. A partir da década de 1970, começa a emergir o Movimento Homossexual Brasileiro (MHB), aliado a intensificação de outros movimentos, como o feminista, negro, sindicalista e ecológico. O pensamento da contracultura denunciava a tradição e o conservadorismo na sociedade, destaco a produção e circulação do jornal homossexual “Lampião da esquina” com o objetivo de comunicar, denunciar e protestar, entre 1978 a 1981.

Imagem 3: Edições do jornal “LAMPIÃO da esquina”. Foto: Fundação Perseu Abramo.

Ainda podemos contextualizar com a correnteza da onda de levantes de resistência que foram possíveis ao longo das “veias abertas América Latina” que passavam por regimes ditatoriais. A museóloga Mayara Ladeia e a historiadora Thainá Castro demonstram que as contestações às estruturas sociais não se mantiveram apenas na influência e no surgimento dos movimentos sociais conjuntamente ao início da organização LGBTQIA+, pois tiveram impactos também no campo museológico. De acordo com as autoras, este campo por volta da década de 1970 já havia passado por críticas dos movimentos sociais, negro, feminista, estudantil e pelas discussões da Mesa Redonda de Santiago no Chile, em 1972.

Convergindo com os questionamentos do campo museológico, ganha espaço a chamada Museologia Social, vinculada às preocupações e às causas contemporâneas, a partir de elaborações teóricas e práticas comprometidas com a emancipação das relações e dos saberes com os fenômenos, movimentos sociais e comunitários. Com o processo de redemocratização e a ascensão de governos progressistas como a gestão do governo Lula (2003-2011), observamos a valorização da política cultural e democrática, destacando a importância dos museus como um dos elementos desta mobilização e também o avanço da pauta LGBTQIA+. Houve a integração da população na agenda do governo federal, com a criação de programas voltados para o reconhecimento dos nossos direitos como o Brasil Sem Homofobia (2004) e Coordenação Geral de Promoção dos Direitos de LGBT(2009), por exemplo.

No que tange ao fortalecimento dos museus, tivemos a oportunidade de ter em nosso tempo-espaço, o glorioso Gilberto Gil como Ministro da Cultura, gestão na qual foi lançada a Política Nacional de Museus (2003), o IBRAM e o Sistema Brasileiro de Museus (2009). E, concomitante a estas políticas públicas federais e estatais, que olhando do momento atual, visualizo como um deslanchar, o museólogo e historiador Rafael Machado (2022) soma a implementação do Programa Pontos de Memória, com o objetivo de difundir a voz e a representação às memórias individuais e coletivas nos museus e territórios pertencentes às comunidades historicamente excluídas, o que consequentemente contribuiu para que a temática LGBTQIA+ conquistasse espaço no meio museológico.

Se conquistar o direito à existência, ainda que hoje existir ainda custe muito, pareceu por muitos anos quase impossível, imaginem o campo museológico, visualizado por muitos como aquele que perpetua e cristaliza a narrativa de uma história oficial colonizadora, branca, eurocêntrica, patriarcal e heteronormativa? Foi em oposição ao pensamento LGBTfóbico que a Museologia LGBT+ passou a reivindicar seu território no campo. Para o museólogo Tony Boita (2018) a preservação e a musealização de bens culturais da memória LGBT+ no país surgiram a partir do movimento pelos direitos básicos e civis, no contexto de redemocratização e tratamento/cura do HIV/AIDS. Como formas de ruptura e reivindicação do protagonismo da própria história destaco a primeira iniciativa museológica o Museu da Sexualidade (1998) em Salvador, criado pelo Grupo Gay da Bahia; Museu da Diversidade Sexual em São Paulo (2012); Rede LGBT de Memória e Museologia Social (2012) em Petrópolis/RJ; Revista Memória LGBT (2013); Ponto de Memória Aquenda as Indacas, iniciativa da Associação Grupo Orgulho, Liberdade e Dignidade (GOLD) no Espírito Santo desde 2005; o Centro de Memória LGBTI João Antônio Mascarenhas / UFPel (2018); e os virtuais Museu Transgênero da História da Arte – MUTHA (2019) e Museu Bajubá (2020).

Imagem 4: Exposição virtual “Transespécie” do Museu Transgênero da História da Arte.
Imagem 5: Exposição virtual “Amor nas ruas” do Museu da Diversidade Sexual.
Imagem 6: Exposição virtual “Entre gritinhos e emoções – 55 anos de Miss Travesti Minas Gerais em Belo Horizonte” do Museu Bajubá.

Todo auge de festa tem seu fim e dessa vez não tivemos o direito ao after. No ano de 2018, assistimos as luzes apagarem e as cortinas se fecharem. Nossos sonhos e existências se materializaram em ruínas. Jair Bolsonaro assumiu a presidência e o conservadorismo abraçou as instâncias de poder. Perdemos muito nos campos político, econômico, social, ambiental e sanitário com o emergir da pandemia do COVID-19, e mais ainda que tudo isso? Perdemos a vida, muitas vidas. Vivemos a acentuação do desmonte da educação, da cultura, da ciência e da saúde. Em outra direção, assistimos o aumento da inflação, da fome, desemprego, violência, garimpeiros, instabilidade, autoritarismo… e no meio disso? Continuamos perdendo vidas, muitas vidas. Pelo racismo, feminicídio, extermínio dos povos originários, homofobia e outras não nomeadas. A cada 27 horas morre uma pessoa vítima de LGBTfobia. O Brasil é o que mais mata LGBTQIA + no mundo pelo quarto ano consecutivo. O filósofo alemão Walter Benjamin sinaliza que “nossos os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.”

Mais uma vez ele venceu. O Museu da Diversidade Sexual em São Paulo foi criado em 2012, localizado dentro da estação República do metrô (linha vermelha) ligado à Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. Foi o primeiro equipamento cultural da América Latina dedicado à comunidade com o objetivo preservar, fomentar, incentivar, protagonizar, difundir as vozes, cores, visualidade e texturas à memória LGBTQIA+. No dia 30 de maio de 2022, o museu foi fechado por tempo indeterminado, depois de uma decisão judicial movida pelo deputado estadual Gil Diniz (PL), apoiador de Jair Bolsonaro.

O que lembrou de uma ação que já aconteceu antes, a exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira apresentada no espaço Santander Cultural em Porto Alegre, no ano de 2017. Tendo a curadoria de Gaudêncio Fidelis, reunindo 270 trabalhos de 85 artistas que abordavam a temática LGBT, questões de gênero e de diversidade sexual, dialogando, fazendo recortes e intervenções por meio de obras de meados do século XX até os dias atuais. A exposição foi cancelada e censurada devido às polêmicas que mobilizavam acusações de apologia à pedofilia e zoofilia, pautadas pelo Movimento Brasil Livre (MBL) e religiosos.

Mas o filósofo também diz que “O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador”. Estendo este dom para além do historiador, o educador Paulo Freire também trabalhou a esperança, mas não a que espera, mas a que se movimenta. Que se movimenta e em movimento com os outros escova a história a contrapelo como propõe Walter Benjamin. Apesar das frestas tão estreitas, visualizar tantas ações, acervos, centros e laboratórios de pesquisa, políticas, pontos de memória, museus (mesmo que em sua maioria virtuais) ,exposições e redes com o compromisso de romper com o que ainda aprisiona para produzir, promover, preservar, divulgar e dar espaço à Museologia LGBTQIA+. Entender e assumir a tarefa histórica individual e coletiva com os que já se foram, pavimentando o caminho dos que estão aqui e dos que vão chegar por um projeto de sujeitos, memória e país construído por mãos negras, coloridas e populares.

Dia 28 de junho é Dia do Orgulho Internacional LGBTQIA+, não pela sensação de liberdade como se a tivéssemos alcançado. Um dia foi sonho, transformou-se em luta e com alguns frutos. É dia do orgulho da coragem e da continuidade de existir e lutar pelo amanhã que será outro dia.

PARA SABER MAIS

Textos

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História, 1940

BOITA, Tony William.Cartografia Etnográfica de Memórias Desobedientes. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,Universidade Federal de Goiás, 2018.

BOITA, Tony; BAPTISTA, Jean Tiago; HABBIB, Ian; SABARÁ, Deborah. “Museologia Comunitária Trasngênero de História da Arte e Ponto de Memória Aquenda as Indacas no ensino de Museologia”. Museologia e Interdisciplinaridade, Vol 2, número 21, 2022

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992

LADEIA, Mayara Lacal Cunha; CASTRO, Thainá. “A museologia LGBT existe? Reconstruíndo os passos do movimento LGBT+ junto à museologia brasileira”. Museologia e Interdisciplinaridade, Vol 2, número 21, 2022.

MACHADO, Rafael dos Santos. “Cartografias Museológicas: das resistências e dos processos museológicos em casas de acolhida LGBT no Brasil”. Museologia e Interdisciplinaridade, Vol 2, número 21, 2022. Disponivel em: https://periodicos.unb.br/index.php/museologia/article/view/41792/33301

Docs

A revolta de Stonewall – https://www.youtube.com/watch?v=cxSBW79yxjQ

Dzi Croquetes (Stremio)

A Morte e a Vida de Marsha P. Johnson (Netflix)

Favela Gay – You Tube – https://www.youtube.com/watch?v=4gjjXLvhOXo

Links

https://museudadiversidadesexual.org.br/

https://revistahibrida.com.br/historia-queer/5-vezes-que-pessoas-lgbti-foram-perseguidas-na-ditadura-militar/

https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/11/politica/1505164425_555164.html

Museu da Diversidade Sexual em São Paulo é fechado por tempo indeterminado

https://wp.ufpel.edu.br/memoriaslgbti/

Página de Início

https://memoriaslgbt.com/projeto-memorias-lgbt-goias/

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