Sobre a existência e a resistência de outras memórias – o fechamento do Museu da Diversidade Sexual
por Ana Lourdes Costa
Um tempo desses, me vi pensando em uma metáfora entre museus e as questões de gêneros e sexualidades, e percebi que se criasse uma persona para maioria das instituições museológicas brasileiras ela seria homem, cis, heterossexual, branca. É que as narrativas, acervos e as memórias construídas nesses espaços, se pararmos para pensar, falam de uma história oficial e de uma museologia tradicional, o que não é nenhuma novidade. Olhando do alto, pela superfície, parece que esse projeto é hegemônico, mas não é. Em paralelo, cruzando essa suposta hegemonia, há outras memórias sendo construídas e narradas nos museus e por museus brasileiros. Poderia citar inúmeras instituições museológicas que trabalham com narrativas dissidentes, mas me atenho a uma em especial, o Museu da Diversidade Sexual de São Paulo.
Primeira instituição museológica da América Latina dedicada à diversidade sexual, foi criada em 2012, e é destinada “à memória, arte, cultura, acolhimento, valorização da vida, agenciamento e desenvolvimento de pesquisas envolvendo a comunidade LGBTQIA+ – contemplando a diversidade de siglas que constroem hoje o MDS – e seu reconhecimento pela sociedade brasileira. Trata-se de um museu que nasce e vive a partir do diálogo com movimentos sociais LGBTQIA+, se propõe a discutir a diversidade sexual e tem, em sua trajetória, a luta pela dignidade humana e promoção por direitos, atuando como um aparelho cultural para fins de transformação social.”¹
Porém, no dia 29 de abril deste ano, ao acessar minhas redes sociais, me deparo com a notícia do fechamento do Museu, devido a uma decisão judicial, às vésperas da inauguração da exposição DuoDrags. Debaixo da narrativa de um suposto descumprimento contratual na gestão do equipamento, há outra, muito explicita “invocando ofensa à moralidade pública.”² Estamos diante, então, de uma ação que nos mostra como são postas as disputas de poder em torno de corpos, sexualidades, identidades de gênero, e o direito às memórias dissidentes.
Na busca por escuta de quem faz o Museu, entrei em contato com Marisa Bueno, museóloga, arquiteta e diretora do Museu da Diversidade Sexual. Lembrando que o Museu está localizado na estação do metrô República, em São Paulo, maior malha metroviária do Brasil, durante nossa conversa, Marisa me conta da relação do público, da reação das pessoas que utilizam o metrô, que em muitos casos acabam por se tornar público da instituição, varia, vai dos 8 aos 80. Certa vez, com o fechamento, a equipe decidiu colocar cartazes com o QR code para assinaturas que manifestassem o apoio á reabertura do museu, mas que um homem vestindo terno, passou arrancado os cartazes. Por outro lado, uma grande parte do público jovem LGBTQIA+, que frequenta a instituição, inclusive sendo levados por suas escolas, retorna trazendo seus pais, e apresenta o Museu como parte importante de reconhecimento das suas existências. A diretora também me relata que a instituição conta com bons parceiros, inclusive sendo procurada por empresas que acreditam no poder do Pink Money. Sobre a reabertura do Museu, a diretora e a equipe estão otimistas, pois um parecer do Ministério Público de São Paulo, acerca os autos do processo de fechamento do Museu da Diversidade Sexual, é o primeiro documento que analisa, de forma séria, todo esse processo e que se mostra favorável à reabertura da instituição (nas notas de rodapé, o referido parecer. Via lá, vale muito a leitura).
No momento em que ouço Marisa falar que, antes do fechamento do Museu, a equipe estava entusiasmada com a nova fase da instituição, que incluía a ampliação do espaço, onde seria elaborada uma exposição de longa duração que contaria com uma narrativa sobre parte da cronologia de resistência da população LGBTQIA+, um panorama histórico de orgulho e resistência, me lembro de um texto do museólogo Tony Boita³, que diz “Assim, os corpos, os saberes, os lugares e as expressões LGBT têm sido sistematicamente excluídos das políticas patrimoniais e dos museus institucionalizados. Esse mecanismo de negação dos direitos culturais dessa população é revelador de um sistema hetero-cis-normativo, que busca apagar as histórias e as memórias associadas às sexualidades desobedientes. Construídas entre afetos e resistências, as memórias transviadas ressurgem em iniciativas reveladoras da força e das redes de pessoas travestis, transexuais, lésbicas, bissexuais e gays.”? Penso que esse seja o caso Museu da Diversidade Sexual e, também, de outros museus e exposições que resistem ao conservadorismo pautado na falsa ideia da “família tradicional brasileira”. Esse é o caso do Museu do Sexo das Putas, em Belo Horizonte, que aguarda ser inaugurado e já foi envolvido, também, em disputas por parte de políticos do legislativo local. Pretendo escrever um texto sobre esse museu, mas fica para outro dia, aqui, no Exporvisões, espaço de miradas afetivas e democráticas sobre memórias, museus, patrimônio.
Sigamos, pois resistir é preciso.
¹Site do Museu da Diversidade Sexual. Disponível em: https://museudadiversidadesexual.org.br/ Acesso em: 22 jul. 2022.
²Trecho do parecer do Ministério Público de São Paulo sobre os autos do processo de fechamento do Museu da Diversidade Sexual. Disponível em: http://institutoodeon.org.br/wp-content/uploads/2022/06/Parecer-do-Ministe%CC%81rio-Pu%CC%81blico-sobre-os-autos-do-processo-no.-2100933-78.2022.8.26.0000-e-2086059-88.2022.8.26.0000.pdf Acesso em: 20 jul. 2022.
³Museólogo, coordenou o o projeto Memória LGBT no Museu de Favela, Pavão, Pavãozinho e Cantagalo (MUF), foi diretor Museu das Bandeiras, Museu de Arte Sacra da Boa Morte e Museu Casa da Princesa, museus vinculados ao Instituto Brasileiro de Museus.
?BOYTA, Tony. [publicação no feed em 09 de novembro de 2021]. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CWE67yrNESH3xl9yjzTle_EMGjJCnt3dMB8Jlg0/. Acesso em: 19 jul. 2022.