O silêncio das esculturas do Palácio Capanema
por William Bittar/Sandra Branco
O Ministério da Educação e Saúde Pública, posteriormente denominado Palácio Capanema, foi criado no início do Governo Provisório de Vargas, em 1930, pasta outorgada a Francisco Campos, politico conservador e simpatizante de governos autoritários, responsável pela Constituição de 1937 (Estado Novo) e participante da redação do AI-1, de 1964.
Sem contar com sede própria, em 1935, na gestão Gustavo Capanema, a União abriu concurso público para um novo edifício, com resultado polêmico. Archimedes Memoria, proeminente arquiteto e professor da Escola de Belas Artes, venceu a concorrência, mas seu projeto não foi construído.
A historiografia oficial registra que Capanema, com participação do arquiteto Lucio Costa, manifestou sua preferência pelas propostas modernistas, descartando o vencedor que apresentou uma projeto com repertório art-déco, muito comum internacionalmente e apreciado por outros governos autoritários.
Capanema e Costa constituíram uma equipe para desenvolvimento de novo projeto, que se tornou referência para a implantação da arquitetura moderna no Brasil, composta pelos arquitetos Affonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira, Ernani Vasconcelos, Carlos Leão e Oscar Niemeyer, que se agregou ao grupo durante os trabalhos.
Os primeiros estudos não agradaram ao Ministro e mais uma vez, por interferência direta de Costa, houve o convite àquele considerado por ele “o maior arquiteto do nosso tempo”, Le Corbusier, para consultoria sobre a implantação da Cidade Universitária e para o Ministério.
O convidado chegou ao Rio de Janeiro em julho de 1936 e durante cerca de um mês promoveu conferências e participou diretamente nos projetos para os quais fora convidado. Seus croquis para o edifício ministerial indicavam uma escultura monumental de um Homem Sentado, na fachada principal, elemento recorrente em diversos estudos posteriores, incluindo aqueles da comissão responsável projeto definitivo. O próprio ministro acolheu a ideia, defendendo-a com veemência para o presidente, pois afinal seria o Ministério do Homem.
As esculturas no Palácio
As Belas-Artes estavam presentes por todo o edifício, interna ou externamente: pinturas a têmpera, azulejaria, painéis, esculturas em grupo, isoladas ou mesmo os bustos tradicionais. Artistas modernos, independentemente de suas orientações ideológicas, tiveram seus nomes sugeridos e aprovados, sem qualquer interferência direta do presidente.
Candido Portinari pintou painéis na sala de audiências e hall de recepção, ambos no gabinete ministerial e também no auditório, além da azulejaria presente nos grandes panos murais do pavimento térreo, em conjunto com Paulo Rossi Osir.
Bruno Giorgi esculpiu os bustos de Gonçalves Dias, Rui Barbosa, José de Alencar, Osvaldo Cruz, Machado de Assis e Castro Alves, distribuídos pelo gabinete ministerial, além do Monumento à Juventude Brasileira, conjunto colossal disposto em posição estratégica nos jardins do pavimento térreo, voltado para a fachada envidraçada do edifício e a Moça em Pé, também colocada no térreo, porém em recinto fechado, o hall de acesso privativo às dependências do ministro.
Celso Antonio foi o primeiro artista contratado para realização do Homem Sentado ou Homem Brasileiro, obra encomendada num momento inicial para ocupar, com destaque, o pavimento térreo, conforme sugestão de Le Corbusier. Antonio também esculpiu os bustos de Getúlio Vargas e Capanema, além da Moça Reclinada, originalmente disposta no terraço-jardim, anexo ao gabinete do Ministro, Mãe ou Maternidade, coroando o cilindro central da escada helicoidal de acesso ao mezanino, e a Moça Ajoelhada, uma pequena escultura em granito rosa, originalmente para o pátio, mas instalada em um gabinete administrativo no oitavo pavimento.
A Moça Reclinada foi retirada do jardim, transferida para o lugar original da Maternidade, enquanto esta foi guardada e transferida para um jardim, entre pistas de rolamento, na Praia de Botafogo, fora de seu contexto original.
Jacques Lipchitz, escultor lituano, recebeu a encomenda para realizar o Prometeu Liberto, para a empena do auditório. O resultado que não logrou êxito em relação às dimensões originalmente propostas, foi substituído por um estudo, desagradando o autor.
Adriana Janacópulos, a única representante feminina presente no corpo responsável pelas artes integradas, esculpiu Mulher Sentada, implantada no terraço-jardim contíguo ao gabinete do ministro, em conjunto com a Moça Reclinada, de Celso Antonio. A artista recebeu a encomenda em fevereiro de 1938 e seria, originalmente, em mármore branco Ravaccioni. A peça final, ampliada, foi executada em granito cinzento brasileiro, de Petrópolis, entregue em 1942. Segundo Fernando de Azevedo, é uma obra prima de realismo poético. Bem construída e bem modelada, é rica de qualidades de finura e equilíbrio.
O silêncio dos minerais
Observando-se o conjunto de esculturas incluído no edifício, com exceção aos bustos, pois todos são personalidades masculinas, tratados de forma absolutamente figurativa tradicional, as obras monumentais representam a figura feminina, incluindo Juventude, de Giorgi. Apenas o Prometeu de Liptchitz fugiu à regra, mas tratava de um personagem mitológico.
Há, portanto, um curioso paradoxo. A maioria dessas obras foi criação de artistas masculinos, pois apenas uma escultora, Adriana Jananópulos, fora contratada para executar sua Mulher Sentada, colocada no terraço-jardim do gabinete ministerial.
Havia a expressa intenção de associar a pasta a um “Ministério do Homem” e acatando a uma sugestão original de Le Corbusier, optou-se pela contratação de Celso Antonio para realizar a empreitada, jamais concluída, mas apresentada ao público junto à maquete do edifício, o Homem Sentado, durante a exposição do Estado Novo, em dezembro de 1938.
Em 1943, tal escultura seria substituída em temática e autoria pela Juventude Brasileira, de Bruno Giorgi, um jovem casal que estimulava o civismo entre os estudantes, caminhando pelo pátio em direção ao ministério.
A “Nova Mulher”, companheira desse homem brasileiro, pouco aparecia com a mesma representatividade ou valorização, devido ao seu papel na sociedade. O próprio direito ao voto feminino era conquista muito recente. Ainda assim, era concedido apenas a casadas, desde que autorizadas pelo marido, ou viúvas que se sustentassem. Apenas em 1934 foi integralmente previsto na Constituição.
Ainda assim Janacópulos estabeleceu diretrizes para sua escultura, Mulher Sentada, desde os estudos iniciais, revelando em entrevista que era necessário que a nossa esculptura fixe tal modelo, eternize as linhas e a vida interior da brasileira de hoje – tal como ela existe já no romance, na poesia, na música (na canção popular) e mesmo na pintura².
A força feminina, expressa com energia nas esculturas de Celso Antonio, seria observada pela expectativa da sociedade em relação ao papel da mulher, inclusive na arte, como um doce e sensual modelo, em suas Maternidade e Mulher Reclinada, plena de sensualidade tropical.
Observando o conjunto escultórico do edifício, decorridos quase oitenta anos de sua inauguração, aquelas peças de arte talvez não tenham perpetuado sua mensagem original. Fora de seu contexto político, torna-se necessário estabelecer associações mais detalhadas para apreender a mensagem de sua época, inclusive para aqueles que trabalham nas seções remanescentes, após a mudança da capital para Brasília.
Além disso, quase todas as esculturas estão distribuídas no interior da edificação, exigindo algum estímulo e interesse do público para adentrar e compartilhar sua contemplação, exceção feita à Juventude, que passeia pelos jardins do pavimento térreo. Mesmo esse conjunto, pela sua implantação, não raramente um transeunte a associa ao edifício mais próximo, dissociando-a do diálogo idealizado originalmente.
Outras peças foram transferidas, por questão de gosto pessoal, como no caso do arquiteto Lucio Costa, que aproveitou a realização de obras de manutenção e encaixotou a Maternidade, executada em mármore, em 1941, autorizando, em 1968, sua transferência para um jardim da Praia de Botafogo, no Rio de Janeiro. A praça, de difícil acesso, é cercada por vias com tráfego intenso, ficando a escultura exposta às intempéries e ao vandalismo que contribuirão para sua deterioração, caso a mesma não seja reincorporada ao seu lugar de origem.
Cada escultura ali concebida definia uma intenção, relacionada diretamente ao seu lugar. Era a materialização do ideário de seus criadores, ainda que não lograssem o êxito pretendido no diálogo com o público em geral. Depois de concluído, cada elemento artístico passou a construir sua própria história, através da presença, ausência, remoção ou dos extáticos e estáticos silêncios, nem sempre ouvidos ou interpretados.
Algumas daquelas esculturas nasceram incompreendidas, como o Homem Sentado, de Celso Antonio, nunca construído; a nudez sensual da Moça Reclinada, que causou alguns protestos dos mais conservadores; a força nativa da Mulher Sentada, de Janacópulos, acompanhando a Moça nos jardins ministeriais, pouco visitados pelo grande público.
As duas peças que se encontram mais acessíveis à contemplação são o Prometeu de Lipchtiz, motivo de polêmicas, rejeições e pilhérias, desde sua colocação na empena cega do auditório e o colossal conjunto Juventude, de Giorgi, a única escultura que inclui um casal, mas nesse caso, com o sutil posicionamento da figura masculina à frente. Uma concepção forte e vigorosa, que homenageava os jovens, procurando aproximá-los do Estado Novo.
O silêncio nos sussurra diante daquele casal, que sugere percorrer o átrio, caminhando entre os jardins de Burle Marx: ela pode estar caminhando atrás, porém certamente protegendo o companheiro, aguardando o momento de seguir ao lado, quem sabe até os jardins da Praia de Botafogo para resgatar a Maternidade para seu lugar de origem.
¹ Este texto é adaptação de um artigo originalmente apresentado no I Congresso Internacional Estudos da Paisagem, realizado em 2021, promovido pela FAU/UFAL, escrito em coautoria com a arquiteta Sandra Branco.
² JANACÓPULOS, A. Uma esculptora brasileira de volta da França. Jornal do Brasil, 09 jun 1932. p. 6.
Para saber mais:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Queixa da moça reclinada. In Jornal do Brasil. Caderno B, 02 mar 1974. p.5.
BITTAR, William, MENDES, Chico e VERÍSSIMO, Chico. Arquitetura no Brasil – de Deodoro a Figueiredo. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2015.
CERCHIARO, Marina Mazze. Esculpindo para o Ministério: arte e política no Estado Novo. São Paulo: Dissertação de Mestrado em Filosofia, Instituto de Estudos Brasileiros/USP, 2016. 2 v.
LISSOVSKY, Maurício e SÁ, Paulo Sérgio Moraes de. Colunas da Educação; a construção do Ministério da Educação e Saúde (1935-1945). Rio de Janeiro: MINC/IPHAN; Fundação Getúlio Vargas/ CPDOC, 1996.
SOARES, Sandra Branco. Capanema Maru: o Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro: Jauá, 2021.
XAVIER, Alberto(org.). Depoimento de uma geração: arquitetura moderna brasileira. 2. ed. SãoPaulo: Cosac & Naify, 2003.