Brasil descoberto
por Carina Martins
Moro no Brasil
Não sei se eu moro muito bem, ou muito mal
Só sei que agora faço parte do país
A inteligência é fundamental
“Moro no Brasil”, Farofa Carioca, 1998.
Há mais de 20 anos, vim para “Costa do Descobrimento” acompanhar parte dos eventos relativos aos 500 anos da conquista portuguesa. Vim com um grupo de amigos da História e com minha irmã. Participamos de um congresso internacional sobre o tema que reuniu várias universidades em Porto Seguro e Ilhéus. Eu já frequentava bastante a Bahia desde que entrei na universidade. Aliás, um pouco antes, em duas ocasiões muito especiais: na aposentadoria do meu pai, quando embarcamos em uma viagem familiar inesquecível e conhecemos Arraial d’ Ajuda e, depois, na comemoração da aprovação do meu vestibular, ambas com uma temporada bem alargada. Nesse meio tempo, tento manter a métrica de uma visita ao ano, ao menos, pois a Bahia me revitaliza a alegria e a inspiração como nenhum outro lugar.
Este ano estou em Coroa Vermelha, o lugar disputado como ponto central no processo de conquista com a realização da famosa Primeira Missa. Aliás, há uma réplica da cruz, com base em granito, tão sofisticada que faz qualquer leigo acreditar que está diante da própria, da original, o que sabemos que não é possível.
Olho ao redor, em um país que comemora o bicentenário de sua independência política e vejo cada vez mais as repercussões do entreguismo do atual governo. Estrangeiros, sobretudo os alemães, os mesmos que deixaram a amarga lembrança do 7×1, compram terrenos, imóveis e preveem a construção de aeroporto internacional na região de Santo André. Isso é papo para outro post, mas é desesperador ver que os moradores estão sendo expulsos de seus territórios com uma avassaladora gentrificação. “Nós não vamos pagar nada, é tudo free, tá na hora, agora é free, vamos embora, dar lugar para os gringos entrar…”, já prenunciava Raul, outro baiano arretado.
Nestes primeiros dias aqui, percebi alguns equipamentos que não existiam à época dos 500 anos. Um “Memorial da Epopeia do Descobrimento” perto de Porto Seguro traz imagens de conquistadores em caixa alta, com símbolos nobres, azulejaria portuguesa e réplica de caravela. Empreendimento privado, o ingresso custa R$30,00, bem maior que o valor da maioria dos museus públicos brasileiros. Não entrei por digressões éticas, mas conversei com os funcionários e documentei a fachada e seu entorno. Estamos em 2022 e ainda há espaço no Brasil para tais celebrações dos conquistadores? A resposta é positiva, basta lembrar que a principal iniciativa do governo é trazer o coração de D. Pedro I ao Brasil.
É possível perceber hotéis, pousadas e barracas de praia que louvam os colonizadores, bem como estátuas no comércio de estética duvidosa que trazem, lado a lado, português e indígena, com todos os estereótipos que facilitam o reconhecimento do turista das memórias escolares. “Cabral Beach”, “Cabana do Portuga”, “Hotel do descobrimento” são nomes de empreendimentos comerciais usuais por aqui, sem nada a encobrir as vergonhas.
Inspirada por essa experiência resolvi propor uma série para o blog intitulada “Des-cobrir a barbárie, desmonumentalizar o descobrimento” iniciando pela representação da conquista portuguesa. Evidentemente, o meu maior interesse são os povos originários e terei tempo para visitar as reservas e a linda escola diferenciada que avistei na rodovia. Vou então deixar minhas impressões sobre a monumentalização do patrimônio e da memória colonial, em uma primeira e rápida aproximação.
Santa Cruz Cabrália, cujo nome já indica qual memória foi vencedora, tem um conjunto arquitetônico tombado pelo IPHAN, que no seu site indica que os tombamentos de patrimônio material na Bahia seguem os marcos da colonização com os ciclos de extrativismo, cana de açúcar e fumo, tudo em linguagem supostamente neutra. Em Santa Cruz Cabrália, os processos de tombamento ocorreram em 1979 e 1981, já na gestão de Aloísio Magalhães, portanto. Preservam o conjunto paisagístico e arquitetônico da Cidade Alta, a orla marítima e o Ilhéu da Coroa Vermelha.
Li e documentei todas as placas oficiais do patrimônio colonial da cidade. Não há nenhuma menção à barbárie, violência, resistência. O processo colonizatório é apresentado como encontro e o patrimônio colonial, como marco de nossa nacionalidade.
Observem vocês que estamos no plano da natureza e da fé. A pujança da natureza, tão descrita por Pero Vaz de Caminha e a cruz que marca o projeto da Igreja como braço da colonialidade. E o vazio evocando uma ideia de ausência que até hoje dói em quem visita estes lugares com o mínimo de sensibilidade.
Em 2000, Fernando Henrique Cardoso e sua comitiva inauguraram a cruz de base monumental em granito, de caráter estético duvidoso, com forte escolta policial, com cerco à Coroa Vermelha para impedir a entrada e participação dos movimentos sociais dos povos originários. As cenas que estamparam os jornais provocaram indignação. No bojo das “comemorações dos 500 anos”, o Brasil era descoberto como um país violento, segregacionista e colonial. As disputas de narrativas foram intensificadas, mas fato é que quem foi recebido com as honras para a suposta celebração foram, pasmem, os portugueses, representados por seu presidente Jorge Sampaio. A placa diz “(…) fez-se erguer este marco, no lugar do encontro entre nativos da terra e navegadores portugueses de 1500”. Impressiona essa memória em granito estar intacta.
Ao caminhar pela rua principal do comércio, observei uma camisa que dizia mais ou menos assim “Coroa Vermelha, local onde os índios descobriram Cabral”. Sabemos que perdido ele não estava, mas ao menos dei uma boa risada dessa provocação.
Hoje, duas décadas depois, as cruzes continuam a rasgar a memória e projetos de Brasis mais plurais e democráticos. No dia de finalizar o texto, 19 de agosto, recebo um vídeo de whats app sobre uma denúncia de cristofobia vindo de um bolsonarista ignorante e uma notícia de tiroteio na reserva indígena de Monte Pascoal.
O Brasil de 2022 é mais feio e duro que o granito da base da cruz da réplica da Primeira Missa. Um país descoberto, que expõe a nudez da defesa da continuidade do projeto colonial por parte da elite assentada em sua riqueza extrativista e predatória. Um país que sangra, arde, destrói, silencia e mata.
E, por isso, apurarei o olhar e o ouvido para perceber todas as fissuras e pixos em relação a este projeto de memória. “A inteligência é fundamental”.
Interessante! Sou de Porto Seguro e estou fazendo doutorado em História sobre esse tema.
Ei João Rafael, ficamos curiosas com sua pesquisa. Escreva para nós! Um abraço
EI João Rafael, gostaríamos muito de seu contato. Escreva para nós: oficinasexporvisoes@gmail.com. Obrigada!