O Pijama do Getúlio – crônica de uma indumentária icônica
por Andre Andion Angulo
Considerando que todo museu tido a princípio como tradicional ortodoxo tem a sua peça “fetiche”, aquele objeto que é quase um lugar comum de ligação sensorial / senso comum imediato entre nome do museu e aquela peça de sua coleção, e aí estamos falando do Museu da República cujo prédio principal é o Palácio do Catete acoplado a um grande jardim romântico inglês do século XIX, uma estrutura bem icônica de museu tradicional do XVII/XIX. Apesar de termos consciência que o Museu da República nos últimos anos tem em sua missão e em suas práticas os auspícios da Museologia Social / Sociomuseologia, onde o diálogo permanente com os diferentes atores sociais consubstancia as ações desenvolvidas pela instituição, o Museu da República é tida no imaginário social como “O Palácio do Catete”, “o palácio dos presidentes” ou ainda “o Palácio do Getúlio, onde ele se suicidou”.
Mas o que eu gostaria de apontar são algumas particularidades de quando o pijama sai do Palácio e vai para a reserva técnica do Museu da República. Por uma questão de técnica de conservação, a boa prática para tecidos geralmente tem um padrão onde eles devem estar expostos por um período X e depois ficarem fora de exposição por um período de 3X, onde X deve ser no máximo 3 meses. Caso sejam indumentárias, as mesmas devem ser acondicionadas na posição horizontal para que as fibras possam “descansar”, assim como estarem longe da incidência de luz e de poeira que no período que a peça fica exposta objetos museológicos no geral estão mais sujeitos a essas incidências.
Então o paletó do pijama do Getúlio é regularmente levado para a reserva técnica, onde ele tem higienização mecânica com trinchas e pincéis de pelo de marta e acondicionado em caixa de polionda revestida de manta cirúrgica. A escolha da gaveta do arquivo deslizante tem uma particularidade – é a face 2, da gaveta 4 do módulo 8 do lado direito, perfazendo uma alusão ao 24/08, dia e mês de seu suicídio. Foi intencional? Sim, essa escolha tem uma intencionalidade de marcar essa quase que permanente mitificação da data do suicídio de Vargas. Podemos pensar quer é uma brincadeira mas gostaria de afirmar que a intenção tem um fundo didático tendo em vista que a reserva técnico do Museu da República tem um programa visitação mediada do setor educativo denominado Nos Bastidores do Museu que é direcionado para professores e estudantes da rede pública de ensino, assim como outros grupos especialmente selecionados e agendados para a visitação ao espaço da reserva técnica e laboratórios de conservação e restauração.
Mas antes de chegarmos a esse arquivo, temos um outro arquivo na reserva técnica que, dentre outros abjetos, acondiciona outras peças de Getúlio, sendo a mais “icônica” a sua máscara mortuária. Na empena deste arquivo, utilizamos alguns recursos museográficos que foram usados em 2014 na exposição dos 60 anos da morte de Vargas no Museu da República, em especial o que retrata uma peça de arte contemporânea da artista e curadora Clarissa Diniz: uma reprodução gigantesca do pijama do Getúlio que chega a 14 metros quando inflado.
Vale ressaltar que em 2012, quando fiquei sabendo da existência desta obra de arte da referida artista, entrei em contato com Clarissa Diniz para que ela pudesse emprestar esta peça para a manifestação que de fato ocorreu em 24 de agosto de 2012. A artista condicionou o empréstimo à seguinte condição – que após a manifestação a sua obra fosse incorporada ao acervo do Museu da República, o que de fato ocorreu e o referido “pijamão” também se encontra no arquivo 1 da reserva técnica.
E Mário de Souza Chagas, atual diretor do Museu da República, faz a seguinte provocação nesta exposição dos 60 anos da morte de Getúlio, quando as imagens da manifestação de 2012 foram usadas como elementos museográficos, como podemos ver na imagem abaixo:
O pijama do Getúlio é paradigmático – foi usado como argumento de duas manifestações dos servidores das instituições vinculadas¹ do então Ministério da Cultura (MinC), que integram o PECC – Plano Espacial de Cargos da Cultura nos anos de 2011 e 2012. Os servidores clamavam pelo cumprimento dos acordos assinados em 2007 e 2011 mas que infelizmente nunca foram cumpridos como a questão de equalização de cargos do MinC, a criação de gratificação/retribuição por titulação acadêmica e uma melhoria substancial dos salários do MinC e vinculadas, tendo em vista que a desistência dos concursados em ficar no Ministério da Cultura e suas vinculadas era uma das mais altas de todo o serviço público federal. E continuará sendo enorme a fuga de cérebros e a vacância de cargos caso não seja revista a importância da Cultura no âmbito das políticas públicas em meio aos planos de cargos da esplanada dos ministérios. Considero que a futura gestão do governo federal que se desenha a partir de 2023, com a possibilidade enorme e almejada que tenhamos o terceiro mandato de Lula, tenha um compromisso com essa categoria de servidores que foi uma das mais atacadas e assediadas nos últimos quatro anos – a refundação do Ministério da Cultura e a atribuição de carreira típica de Estado aos seus servidores. E isso deve acontecer já no dia 02 de janeiro de 2023 com a submissão de PL ou PEC do executivo federal ao Congresso Nacional. Seria um ótimo pedido de desculpas pelo o não cumprimento dos acordos de 2007 e de 2011 e a certeza de que as instituições que balizam a questão das políticas públicas de patrimônio cultural deste país se fortaleçam e que tenhamos uma nova página a ser escrita pelo que entendemos como a cultura brasileira é forte, única e necessária para a dignificação desta Nação.
¹ Instituições vinculadas ao Ministério da Cultura que integram o PECC: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN; Instituto Brasileiro de Museus – Ibram; Fundação Biblioteca Nacional – FBN; Fundação Nacional de Artes – FUNARTE e Fundação Cultural Palmares – FCP, além dos próprios servidores do Ministério da Cultura – MinC.
Andre Andion Angulo
Carioca nascido na Clínica São Sebastião no bairro do Catete durante a vigência do estado da Guanabara. Flamenguista e mangueirense.
Museólogo, responsável pelo programa de modernização da reserva técnica do Museu da República.
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