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Sob as bênçãos de São Benedito. Um relato sobre a 30ª Missa Afro de Itu

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por Aline Montenegro Magalhães

“É um lamento, um canto mais puro
Que me ilumina a casa escura
É minha força, é nossa energia
Que vem de longe pra nos fazer companhia”
Milton Nascimento, Raça, álbum “Missa dos quilombos”, 1982.

Já se passaram alguns dias da 30ª Missa Afro de Itu (SP), que aconteceu no último dia 20 de novembro, na Igreja de São Benedito, na cidade de São Paulo tão conhecida por seus exageros. Mas “o canto mais puro”, a “nossa energia” ancestral ainda estão reverberando por aqui. E não é exagero. Foram cerca de duas horas rezando, dançando e alimentando a alma. É difícil expressar em palavras e colocar no papel o que se viveu, o que se assistiu, o que se sentiu. Mas vou tentar, compartilhando um relato sobre esse evento religioso, organizado pela União Negra Ituana (UNEI), lembrando a morte de Zumbi dos Palmares e o dia da Consciência Negra.

Entramos na igreja pedindo as bênçãos de São Benedito, que no altar principal segurava o menino Jesus. Depois, me peguei admirando a gente preta da cidade honrando a ancestralidade com turbantes, filás, guias e vestimentas coloridas. Já acomodadas nos bancos ou se movimentando para dar início à cerimônia, irradiava alegria e orgulho da negritude, da matriz afro-brasileira de sua fé. Além do colorido das roupas e adornos o templo ostentava uma decoração com flores e chitas que enfeitava e enegrecia ainda mais o ambiente. Coisa mais linda de se ver.

Vozes femininas e masculinas compunham o coral acompanhado de uns seis tambores e um violão. Muita força emanada nos cânticos que começou com a saudação a são Benedito e a entrada da imagem na igreja. “Tá caindo flor, ê tá caindo flor […] Lá no céu, cá na terra, Ê tá caindo flor.” Caiam pétalas de flores sobre nós nos envolvendo em perfume, leveza e paz.

 
Pétalas de flores caindo “do céu”. Foto: Aline Montenegro
Imagem de São Benedito sendo levada ao altar. Foto: Aline Montenegro

 

A missa foi celebrada pelo padre Renilton, que estava de filá e batina em tecido e estampa africanos. Um padre negro muito conhecedor e respeitador das religiões de matriz africana. Animado, conduziu lindamente toda a cerimônia com muita alegria, canto, dança e comunhão com os sacerdotes e sacerdotisas dos terreiros de umbanda e de candomblé da cidade. Ao iniciar a cerimônia, o padre informou que não se tratava da santa missa, mas sim, de um ato ecumênico. E assim, falou dos orixás e da Santíssima Trindade ao longo de toda a liturgia, agregando diferentes rituais e orações em perfeita harmonia.

Três momentos me tocaram profundamente. O primeiro, foi a apresentação da Bíblia com um homem entrando na igreja mostrando ao público o livro sagrado aberto, seguido por um cortejo que cantava e dançava a música “Anunciação” de Alceu Valença. “A voz de um anjo sussurrou no meu ouvido. Eu não duvido já escuto os teus sinais. Que tu virias numa manhã de domingo. Eu te anuncio nos sinos das catedrais. Tu vens, tu vens… que eu já escuto os teus sinais”. Nunca imaginei que essa música tão cantada durante a campanha de Luís Inácio Lula da Silva poderia ter uma pegada religiosa também. Foi emocionante!

O segundo, foi a entrada do ofertório. Um grande cortejo de mulheres e homens cantando, dançando e carregando cestas de pães, frutas, legumes ervas, etc. igreja adentro, para depositar tudo no altar, simbolizando a fartura e o combate à fome que acomete(u) tantos afrodescendentes. No meio do cortejo, Selma Regina Dias, Diretora Cultural da UNEI e uma das organizadoras da festa – foi quem, inclusive, nos convidou – carregava o livro “Brasil: nunca mais”. Na hora fiquei impactada com essa referência às vítimas da Ditadura Militar, por uma mulher negra que estuda Direitos Humanos, entendendo a importância dessa lembrança para que esse tipo de atrocidade não volte a acontecer. Ainda mais quando a população negra é a que mais se mata no nosso país. Depois ela me explicou que se tratou de uma homenagem ao professor Edson Luiz Teles, da área de Direitos Humanos e Arqueologia Forense da Unifesp, filho da Amelinha Teles, jornalista, liderança feminista, membro da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e assessora da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Ambos vítimas da tortura física e psicológica dos militaes, especialmente o major do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-CODI paulista, nos anos de chumbo no Brasil.

D. Selma Dias levando “Brasil: nunca Mais” no ofertório. Igreja de São Benedito de Itu. Foto de divulgação de Selma Dias.
Ofertório no altar com um quadro representando a Nossa Senhora Negra, pintado por Edna Silveira Meneghini e outro representando Jesus Cristo negro.

O último momento foi a benção ecumênica. A YÀ Lucia Amaral, da Casa Axé Ilemuchi Balatan, proferiu uma oração em iorubá e o Padre Renilton fez outra do ritual católio. Ao final eles se cumprimentaram, abençoando um ao outro a partir de seus códigos e suas crenças, num ato muito simbólico de união.

Padre Renilton e Yá Lúcia do Amaral se abençõam e nos abençoam.Foto: Aline Montenegro Magalhães

Não tinha como não lembrar e louvar iniciativas de respeito à diversidade religiosa, de valorização de um catolicismo africanizado e de combate ao racismo. A igreja das Santas Pretas no Museu de Quilombos e Favelas Urbanos – MUQUIFU, por exemplo, em Belo Horizonte (MG), que Padre Mauro tão amorosamente pensou junto com a comunidade, homenageando as lideranças pretas do Aglomerado Santa Lúcia (ASL).

E como não lembrar e louvar o musical “Missa dos Quilombos”, escrito pelo bispo Dom Pedro Casaldáliga e pelo poeta Pedro Tierra, com composições de Milton Nascimento? Ato político cultural e religioso, realizado em Recife, em 1981, foi fruto da abertura da Igreja Católica na América Latina, depois do Concílio do Vaticano II (1962-1965), convocado pelo papa João XXIII. Com o objetivo de fortalecer a religião católica no Brasil foram valorizadas as manifestações locais, especialmente dos povos originários e os de descendência africana, marcando escolha da Igreja pelos pobres, com a Teologia da Libertação. Além de ser encenado até os dias atuais – a última vez que assisti foi uma produção da Companhia de Teatro Ensaio Aberto, no Armazém da Utopia (Rio de Janeiro) -, segue inspirando missas afro como a que acontece, todo dia 13 de maio, dia dos Pretos Velhos da Umbanda, no Quilombo São José  em Valença (RJ), e a que se realiza em Itu há 30 anos.

Um salve aos 80 anos de Milton, nosso Bituca, à Missa Afro de Itu e a tantas outras iniciativas antirracistas de conciliação, respeito e valorização da diversidade cultural e religiosa. Amém! Axé!

Selma Regina Dias, eu, Padre José Renilton Fontes e Ana Paula Nascimento. Foto: Aline Montenegro Magalhães

P.S.1: Como quem vê beleza não vê corre, sugiro fortemente a leitura da monografia de Selma Regina Dias sobre a Missa Afro de Itu, uma grande referência para a escrita do relato aqui compartilhado e para entendimento das lutas e (re)existências do povo negro de Itu para defesa de sua memória, identidade, religiosidade e combate ao racismo. Muito obrigada, Selma, pela sua generosidade e pela ajuda fundamental para que esse texto saísse. DIAS, Selma Regina. Evento religioso: missa afro na Paróquia São Benedito em Itu/SP. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Eventos) – Faculdade de Tecnologia Dom Amaury Castanho (FATEC ITU), 2018. Confira: TCC PARA ENCARDENAÇÃO 10.07

P.S.2: Álbum “Missa dos Quilombos” de Milton Nascimento, 1982, para ouvir e se inspirar: https://open.spotify.com/album/0Mq1xwdNhx0ytGC63PywJd?si=p1EUq3RKSROukFDdpPnRYQ 

P.S.3: As referências a primeira pessoa d plural aparecem no texto porque eu não estava só. Tive o prazer de contar com a companhia da Ana Paula Nascimento, professora que entrou junto comigo no Museu Paulista e que tem sido parceira de tantas experiências, a quem muito agradeço.

Comentário

  1. Que lindeza. Sabedoria ancestral e atual. De Fé, respeito e luta pelos direitos. Agradecida por partilhar