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Os “Arranha-céus” de Salma Mogames

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por Paulo César Garcez Marins

Manifesto-me quanto à oferta da pintura denominada “Arranha-céus”, datada de 1954, de autoria da pintora Salma Mogames (Jacareí, SP, 1925 – Jacareí, SP, 2015), ofertada por Lais Helena Zogbi Porto e Telmo Giolito Porto, colecionadores, proprietários da galeria Arte 132, ele membro de diversas instituições culturais da cidade, como o Museu de Arte Moderna, tendo o casal também doado obras para instituições como o MASP e Pinacoteca do Estado. A obra integrou recentemente a exposição “Mulheres artistas: nos salões e em toda parte”, realizada na galeria mencionada entre 04 de junho e 30 de julho de 2022, sob curadoria da Profa. Dra. Ana Paula Cavalcanti Simioni (IEB/USP), e figura na capa do catálogo dessa exposição. Foi quando este parecerista conheceu a pintura e sugeriu ao proprietário a oferta ao Museu Paulista e à análise da possibilidade de recebimento por meio de seu Conselho Deliberativo.

Arranha Céus de Salma Mogames. Fotografia por Hélio Nobre

Trata-se de pintura a óleo, 100 x 80 cm, representando em primeiro plano uma mulher de costas, com uma criança nos braços, estando em segundo plano um grupo de pessoas dormindo ou sentadas sob o solo, junto a um tapume de madeira. Em terceiro plano, erguem-se arranha-céus, uma paisagem da qual os personagens estão excluídos pelo referido tapume, que funciona como um divisor simbólico. Trata-se de uma representação de alto teor crítico, em que a alusão ao progresso urbano referenciado nos edifícios contrasta com a miséria e a exclusão social dos que dele estão marginalizados.

 

A mulher. Arranha Céus de Salma Mogames. Fotografia por Hélio Nobre. 

 

Pessoas dormindo. Arranha Céus de Salma Mogames. Fotografia por Hélio Nobre
Arranha Céus de Salma Mogames. Fotografia por Hélio Nobre

A pintura, datada no ano em que se comemorou o IV Centenário da Cidade de São Paulo, reveste-se, portanto, de grande interesse, visto que escapa por completo das representações ufanistas que celebravam a cidade por meio da verticalização de seu centro, figurada à exaustão nos álbuns ilustrados dessa década, como demonstrou Vânia Carneiro de Carvalho em sua dissertação de mestrado, denominada Do indivíduo ao tipo: as imagens da (des)igualdade nos álbuns fotográficos da cidade de São Paulo na década de 1950, assim como em suvenires e porcelanas da efeméride presentes no acervo do Museu Paulista.

A pintura traz em seu verso um selo da V Bienal de Arte de São Paulo, de 1959. O texto de Ana Paula Cavalcanti Simioni no catálogo da exposição “Mulheres artistas” indica que a obra não consta do catálogo da referida Bienal e que o site institucional não indica a participação da artista no evento. Conclui que a obra foi submetida, mas não aceita pelo júri que, àquele momento, estava mais sensível à abstração. A pasta da artista no Arquivo Wanda Svevo apresenta ainda uma declaração manuscrita da artista sobre sua trajetória, em que declara “1954 – Recusada de participar no Salão Paulista de Belas Artes da Galeria Prestes Maia, por terem considerado minha pintura demasiado moderna”. Depreende-se, portanto, que a pintora se situava em um campo pictórico intermediário, em que a opção figurativa era algo distante dos padrões dos dois certames e de seus círculos críticos.

Simioni aponta também que Salma Mogames formou-se na Escola de Belas Artes de São Paulo entre 1944 e 1950, tendo posteriormente realizadoestudos complementares na Accademia Cimabue, em Milão. Realiza sua primeira mostra individual no Club Homs, em São Paulo, o que desencadeia o interesse de membros da comunidade sírio-libanesa para contratá-la como retratista, tendo também atuado como ilustradora de livros. Ao preencher a ficha para candidatar-se à V Bienal, declara “Dedico-me à pintura como profissão”. A artista faleceu em 2015, pouco depois do Museu de Antropologia do Vale do Paraíba, situado em Jacareí, ter realizado uma exposição retrospectiva de sua obra, em 2010.

Pode-se mesmo, com certa liberdade em relação ao sentido estabilizado do termo, entender essa obra como uma “pintura de história”, não por referir-se ao passado remoto ou por sua função celebrativa, mas por estabelecer uma visão crítica sobre a metrópole em seu tempo acelerado, em que a somatória de arranha-céus, que se intensificou desde a década de 1940, já era contrastável com o inverso da metrópole: a miséria, que frisa nos personagens da pintura. A crítica social já era corrente entre pintores nas décadas de 1940 e 1950, como em obras de Portinari, Carlos Prado, Eugênio Sigaud e Lasar Segall ou em gravuras de Carlos Oswald, Potty Lazarotto, Renina Katz e Virgínia Artigas. Mogames se insere nesse mesmo movimento crítico, já presente na obra “Êxodo nordestino”, vendida em 1950, durante a exposição de formatura de sua turma na Galeria Prestes Maia.

Tendo em vista tratar-se de uma obra pictórica que oferece uma perspectiva crítica da metropolização de São Paulo no ano de seu IV Centenário, evidenciando movimentos de exclusão urbana que só se acentuariam nas décadas posteriores e que ainda se encontram pouco representados no acervo institucional, recomendo ao Conselho Deliberativo do Museu Paulista o aceite da referida doação, somando-me portanto às manifestações positivas vindas do Serviço de Acervos, que manifesta haver espaço para seu armazenamento, e do Serviço de Conservação, que atesta estar a obra em condições adequadas para seu recebimento.

PARA SABER MAIS:

SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Mulheres artistas: nos salões e em toda parte. São Paulo: Galeria 132, 2022, p. 49.

AMARAL, Aracy. Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira 1930-1970. São Paulo: Nobel, 1984

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