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Petrópolis em páginas – um olhar para os guias do século XIX

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por Carina Martins Costa

Minha relação com a cidade de Petrópolis é antiga, pois na infância aguardava ansiosamente minhas férias na casa dos meus tios na Mosela. Era o momento de estar com minhas primas e curtir aquela cidade que tinha museu com pantufa, muita natureza para brincadeiras, caramelo e fila de passageiros para entrar no ônibus. A viagem entre Juiz de Fora e Petrópolis era relativamente curta e me lembro do cheiro de café da fábrica na estrada, que alertava que estávamos chegando.

Por minha profissão, muitos anos mais tarde, pesquisei Petrópolis por trabalhar no Museu Mariano Procópio e precisar entender um pouco da família imperial e a sociabilidade do século XIX. O Museu Imperial também foi tema da tese de doutorado, quando analisei os guias dos museus históricos nacionais. Depois, professora na UERJ, fiquei feliz quando anunciaram a abertura do campus em Petrópolis, com o curso de Arquitetura e Urbanismo. Um pouco depois, consegui articular uma permuta com um colega e me mudei para cidade, em busca de paz, melhores condições de trabalho e aprofundar as pesquisas no campo de patrimônio.

Morei dois anos na Avenida Ipiranga, antiga Rua Joinville, local que hoje abriga também o campus. As caminhadas pelo centro eram frequentes e muitas delas eram realizadas com os estudantes, em visitas guiadas, tendo em vista que a maioria deles vinha de outras cidades. Assim, fui me habituando com as placas vermelhas do patrimônio, com os eventos nas praças e com o clima frio e chuvoso.

A pandemia me trouxe de volta à Minas, onde emendei uma licença de pós-doutorado. Decidi pesquisar Petrópolis e suas narrativas, em continuidade com as análises de guias e materiais pedagógicos, articulando também outras experiências como produção de roteiros e materiais digitais. Nessa jornada, me deparei com fontes muito interessantes, que desconhecia por completo.

Ao ler o excelente livro de Isabella Perrotta sobre os guias e promenades do Rio de Janeiro, descobri que o guia turístico mais antigo do Brasil é sobre Petrópolis! Fui, então, em busca das fontes primárias e me deparei com o Anuário do Museu Imperial de 1995, organizado pela diretora Maria de Lourdes Horta, que organizou e republicou relatos de viagem do século XIX. Outras digitalizações permitem-nos deliciar com os detalhes editoriais.

É uma delícia percorrer as páginas e imaginar a cidade naquela época vista pelos olhares admirados de quem morava na Corte. São relatos de passeios a pé, piqueniques, idas ao comércio e bailes. Um misto de admiração com as novas tecnologias que permitiam uma viagem multimodal, que se iniciava por navio a vapor na Baía de Guanabara, seguia por locomotiva pela Serra da Estrela e continuava com mulas e charretes até adentrar na cidade.

Os guias foram publicados por quatro homens, sendo três deles jornalistas ou fotógrafos. O primeiro é “Viagem pitoresca a Petrópolis”, de 1862, de Carlos Augusto Taunay, fruto de uma edição robusta com diversas linguagens, como litogravuras, mapa, hino, poesia e textos. As imagens originais foram realizadas por Revert Henry Klumb, fotógrafo da família imperial e autor do segundo guia. Esse, mais conhecido, é o “Doze horas de diligência”, de 1872, fartamente ilustrado, podendo ser considerado um guia mais visual. O terceiro é “Petrópolis- Guia de Viagem”, de 1885, de José Nicolau de Oliveira. Por fim, o “Os estabelecimentos úteis de Petrópolis”, de Tomás Cameron, que depois viria a fundar o jornal “O Pharol” em Juiz de Fora. Quatro documentos em duas décadas!!

Chama a minha atenção, já numa primeira olhada, a relação entre Juiz de Fora e Petrópolis, que foi aprofundada com a construção da Estrada União e Indústria, em 1861. Também imagino que a demanda por conhecer e planejar uma viagem à Serra da Estrela, como era conhecida a região, envolvia curiosidade, planejamento e uma certa compreensão das regras do lugar, tendo em vista a predominância de relatos sobre a vida nessa espécie de Corte sazonal, quando da permanência da família imperial por cerca de 4 meses ao ano. A tecnologia utilizada nos exemplares também se destaca pela reprodução de imagens, o que certamente encarecia sua publicação. Importante lembrar que foram publicados na segunda metade do século XIX, bem próximo à invenção da fotografia.

São guias que dialogam, portanto, com seu tempo e o deslumbre da percepção das transformações tecnológicas e políticas. Demonstram o esforço destes homens em divulgar para um público maior suas experiências e apoiar o crescimento de viagens à cidade.

O primeiro deles, em 1862, já alertava para o atraso do país frente a publicações internacionais, pois “(…) até agora nada teve e nada precisava ter nesse gênero”. Por que não precisava? O autor não responde, mas supomos que seja pela própria dificuldade em se locomover pelo território e explorar aspectos das viagens turísticas, já que eram realizadas por comércio, investigação científica ou necessidade política. De fato, os percursos eram longos e a falta de uma rede de apoio aos visitantes tornava penosa a tarefa.

O interessante deste guia é a ênfase que dá à própria viagem em si. A própria estrutura do guia, em três capítulos intitulados “ida”, “estada” e “volta”, reforça a importância e deslumbre com o deslocamento. Com metáforas laudatórias, como “paraíso terrestre”, Taunay destaca pontos que viriam marcar a narrativa da cidade, como “residência do prazer”, frescura do clima, salubridade, tecnologia e opulência.

O autor apresenta uma imagem bastante negativa do Rio de Janeiro, como um local de heresia ao bom gosto e crimes de lesa-arquitetura. Assim, a saída em direção à Serra é festejada com inúmeros detalhes sobre as paradas e estabelecimentos.

Contudo, a chegada pela Vila Teresa, considerada uma triste zona, traz uma ideia de decepção, superada apenas quando se avista “moradas de casas elegantes”. Considero que essa percepção da cidade permanece na ideia de que somente o centro com seus casarios e palacetes são importantes, em total apagamento dos demais distritos e com desprezo aos territórios populares. Ao imaginar Petrópolis, a maioria terá essa lembrança. Ao pesquisar sobre a cidade, são estas imagens que vêm nos sistemas de buscas. Os recentes crimes ambientais, que tanto impactaram a cidade, causando mais de duas centenas de mortes, parecem estar localizados distantes, numa ideia abstrata de “morro”, pouco articulada à história da cidade.

Ao percorrer as linhas e fotos do guia de Taunay, que pretende ser cicerone de Petrópolis, identificamos ruas, casas, hotéis, pontes e capelas. Mas, curiosamente, não gente. Uma litogravura chama atenção: uma vista da principal rua, a do Imperador, com um senhor negro sentado. Ele não é identificado ou sequer mencionado no texto e na legenda, mas aparece aqui no primeiro plano. Em uma cidade que se esforçou para se identificar como imigrante e abolicionista, a presença do senhor na imagem diz muito. Mais à frente, ao destacar a benevolência das relações sociais, destaca que “o escravo é dócil, o dono complacente: não se houve (sic) grito nem pancada”. Ah, como era a doce a escravidão, só faltou dizer.

Rua do Imperador

Curiosamente, o autor menciona a existência de “árvores indígenas” na praça da Confluência. Então, cara pálida, onde estariam os territórios e povos originários? Nenhuma menção.

As mulheres fazem parte do atrativo do guia e são diferenciadas conforme o uso público da cidade: “belas damas e mimosas demoiselles” quando passeiam a pé e “personagens graves, as mamães, bebês e convalescentes”, nas carruagens. Importante destacar que os espaços públicos eram restritos às mulheres nas cidades coloniais e Petrópolis era uma cidade na qual elas podiam transitar “à toda hora do dia”. Adiante, destaca a segurança e confiança dos moradores, que deixavam suas casas abertas.

A “cidade-criança”, com menos de 20 anos de existência quando da redação do seu primeiro guia, era descrita como uma convivência harmoniosa entre palacetes e casebres de colonos e proletários.

Para os turistas e moradores temporários, o guia apresenta locais de excursões e peregrinações “a pontos dignos de lhes deixarem duradouras lembranças”, como a vista da Bahia de Guanabara na garganta da Vila Teresa, o Quitandinha, o Alto do Imperador, o Palatinado Inferior e Superior, as cascatas do Itamarati, Retiro e Saudades.

  Cascata do Retiro do Bulhões

A cidade foi descrita como cara, semelhante ao Rio de Janeiro e o autor faz, ao final, um esforço em pensar estratégias para baratear a viagem.

Nessa semana que Petrópolis comemora seus 180 anos, vale a pena percorrer essas fontes em busca de marcas de sua divulgação. No site da Prefeitura, percebemos a seleção de locais para as comemorações atuais: praças da Liberdade e Dom Pedro, Casa de Petrópolis, museus Imperial e Casa do Colono, Obelisco, Centro de Cultura Raul de Leoni, Relógio das Flores e Praça 14 Bis, Trevo de Bonsucesso e Catedral São Pedro de Alcântara.

São pontos diferentes do que Taunay divulgou no século XIX. Muitos, nem existiam à época de redação, outros mudaram de função, como o Museu Imperial, antigo Palácio da família imperial.

Será que nessas comemorações, a cidade se mostrará mais plural? Será que o senhor negro terá visibilidade em 2023? E as memórias traumáticas dos crimes ambientais, como serão abordadas? Temos muito interesse e vamos acompanhar com vocês. Como diria Taunay, ao acordar na cidade, acorda também nossa curiosidade.

Caro/a leitor/a, vamos seguir nesta viagem? Aguardem.

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Divulgação do projeto de pós-doutorado “Olhos de Ver”, desenvolvido no PROARQ/UFRJ sob supervisão da Profa. Dra. Ceça Guimaraens, financiado pelo CNPQ.

PARA SABER MAIS

Isabella Perrota, no seu livro “Promenades do Rio. A turistificação da cidade pelos guias de viagem de 1873 a 1939”, editado por Toopbooks em 2015, explora a história e importância dos guias. Imperdível.

A edição mais completa para visualizar o guia está disponível na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, no link https://digital.bbm.usp.br/view/?45000008290&bbm/2640#page/192/mode/2up. Para quem gosta da história dos impressos, aqui percebemos melhor o objeto, com suas capas marmorizadas, detalhes tipográficos e acréscimo de legendas nas imagens. Além disso, é possível perceber a biografia do guia com seus dois ex-libris, um deles do Mindlin.

Outra versão está disponível no Anuário do Museu Imperial de 1995, organizado por Maria de Lourdes Horta Parreira, disponível em https://museuimperial.museus.gov.br/wp-content/uploads/2020/09/1995-Vol.-44.pdf.

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  1. Doze horas em diligência: um guia feito a galope – Exporvisões
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