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“Um sorriso negro, um abraço negro…” Retratos a óleo de Adrien Van Emelen no Museu do Ipiranga

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por Aline Montenegro Magalhães

 

Negro sorridente com chapéu e mãos cruzadas. Van Emelen Adrien_Henri Vital
“Negro sorridente com chapéu e mãos cruzadas”. Adrien_Henri Vital Van EmelenVital
“Dois Negrinhos com Chapéu”.  Adrien Henri Vital Van Emelen

 

A música de D. Ivone Lara não me saía da cabeça ao admirar, pela primeira vez, a concentração de retratos em telas e cores, no Museu do Ipiranga (Museu Paulista da USP). São 33 quadros de autoria do artista belga Adrien Henri Vital Van Emelen (1868-1943), que integram a exposição “Ciclos curatoriais: coletar imagens e objetos”, dedicada a compartilhar, com o público, o trabalho de curadoria realizado nos bastidores do Museu, distribuído por 4Cs: coletar, catalogar, conservar e comunicar.

A coleção chama a atenção por sua qualidade plástica e por apresentar, na sua maioria, pessoas negras e indígenas, que não aparecem (ou quase não aparecem) nas demais exposições do museu, que abordam aspectos da história do Brasil e de São Paulo. Datadas das décadas de 1930 e 1940, foram produzidas a partir de fotografias. É o que nos conta a doadora da coleção, Juacy Dupas, que a herdou de seu pai, Elisiário Dupas. “Papai encomendava os quadros ao Van Emelen. Levava fotografias, aquelas pequenininhas, e ele pintava os quadros, bonitos.”

Assim, eu e a professora Solange Ferraz de Lima iniciamos uma pesquisa sobre a coleção, tendo como um dos objetivos identificar as pessoas ali retratadas. Pois, a exemplo de fotografias, como a da mulher negra com turbante, de Alberto Henschel, não há referência alguma ao nome dos retratados em seus títulos, que foram atribuídos pela doadora com base na aparência e nas ações das pessoas ali representadas, diante da falta de registro feito pelo próprio pintor.

Além da identidade dos retratados, outra das muitas perguntas que mobilizam a nossa pesquisa é a respeito do sucesso desse tipo de retrato em meados do século XX. Afinal, obras do gênero, do mesmo autor, integram o acervo de outras instituições, como o Museu de Arte de São Paulo e o Museu Afrobrasil, além de coleções particulares. Chama a nossa atenção a presença de uma mesma pessoa em diferentes retratos, como o senhor rezando em frente a uma cruz e a D. Adelaide Antônia das Dores, mais conhecida como “Vovó do Pito”. Segundo D. Juacy, Van Emelen pintava pessoas que circulavam pelas ruas, a exemplo da Vovó do Pito que era uma ex-escravizada muito popular no Largo do Paissandu, onde fica a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da cidade – cujo altar de São Benedito era cuidado por ela – e no Largo de São Francisco da faculdade de Direito.

“Negro com Chapéu na Mão Olhando Para um Crucifixo”. Adrien Henri Vital Van Emelen
“Negro de perfil com chapéu”. Adrien HenriVan Emelen Vital
“Negra rezando com um terço” Adrien Henri Van Emelen Vital
“Negra com chapéu e cachimbo”. Adrien Henri Vital Van Emelen

Uma das hipóteses levantadas relaciona-se à previsão de desaparecimento dessas pessoas das ruas da cidade, partilhada por intelectuais das primeiras décadas do século XX. Vistas, por um lado, como perigo e ameaça à ordem, por outro eram tomadas como pitorescas e exóticas. Então, registrar suas feições e seus fazeres, como o trabalho e a reza, assim como seus objetos em coleções etnográficas, era uma maneira de preservar para o deleite da nostalgia o que em breve não existiria mais. Não apenas pela proximidade da morte natural, mas sobretudo por uma necropolítica que impulsionava o processo de modernização dos grandes centros urbanos e do próprio país. Certos tipos de trabalho deixariam de ser praticados em função da industrialização. Projetos de embranquecimento com o incentivo à imigração europeia, bem como as leis voltadas para condenar a “vadiagem e a mendicância” – vide o Código Penal de 1890, e o Decreto-Lei 3.688 de 1941 – contribuíam para fortalecer as previsões.

Enfim, outra pergunta que não sabemos se teremos resposta é quanto à propriedade desses retratos por parte dos retratados. Será que o senhor sorrindo, os amigos que se abraçam alegremente, o senhor que reza diante da cruz, a Vovó do Pito com seu terço e tantos outros puderem ter a posse de seus retratos pintados por Van Emelen? Ou será que essas obras ficaram restritas ao seleto grupo de colecionadores e admiradores do pintor?

Que nossas perguntas possam movimentar a pesquisa sobre a produção, os usos, a circulação e as apropriações das obras de Van Emelen. Que sorrisos e abraços negros possam ser identificados e ter seus agentes compondo outras histórias no Museu do Ipiranga.

Assim, finalizo esse pequeno registro “de campo” de uma pesquisa ainda em sua fase inicial, agradecendo imensamente ao Paulo César Garcez Marins pela generosidade, pelas conversas e pelo incentivo, à Solange Ferraz de Lima pela inspiração, pelas trocas e pela parceria nessa jornada e à equipe de acervo e documentação do Museu Paulista pelo apoio e engajamento: Tatiana Vasconcelos, Valesca Henzel Santini, Rodrigo Martins dos Santos e Ricardo da Mata.

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Para saber mais:

STORMS, Marc Anna Camille Jozef Maria. Ad. H. van Emelen: A trajetória de um artista belga em São Paulo. São Paulo: edição do autor, 2018.

MATARAZZO, Thaís. Vovó do Pinto, personalidade paulistana. YouTube, 17 de janeiro de 2021.

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