O “mártir da Liberdade” entre os “Homens da Independência”.
Sobre o retrato de Tiradentes no Museu Paulista
por Carlos Lima Junior
Não foram poucos os artistas que se esmeraram em fabricar o rosto de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. O alferes condenado à morte na forca em 1792, seguido de esquartejamento, por ocasião da sua participação na Conjuração Mineira, ganhou as mais diversas feições e representações, sobretudo, a partir da implantação da República no Brasil em fins de 1889, quando alçado ao panteão dos heróis nacionais. Nas mais diversas pinturas, esculturas, bustos e monumentos, o alferes, figurado de barba, cabelos longos e vestido de túnica branca – numa associação direta a Cristo – foi sendo cada vez mais convertido em “mártir da liberdade”.
No interior do Museu do Ipiranga, o/a visitante pode visualizar, no alto da escadaria, o retrato de Tiradentes pintado pelo artista fluminense Oscar Pereira da Silva (1865-1939) por ocasião do Centenário da Independência, em 1922. O diretor do Museu na época, Afonso d’Escragnolle Taunay, requisitou ao pintor que realizasse o retrato de Tiradentes, que o fez recorrendo a todos os elementos que pudessem facilmente identificá-lo: barba, cabelos longos e corda ao pescoço.
Alocado abaixo do retrato de Soror Joana Angelica de Jesus, religiosa assassinada pelos portugueses na Guerra da Independência na Bahia em 1823, e posicionado na parede oposta, na qual está o retrato de Domingos José Martins, morto na “Revolução Pernambucana de 1817”, a presença ali de Tiradentes junto a estes dois, conformava o grupo de “mártires” da história pátria lembrados no interior do Museu. Na interpretação do projeto decorativo levado a cabo por Taunay, Tiradentes, sentenciado à forca e esquartejamento pelo crime de Lesa-Majestade, preconizava um suposto sentimento de pertencimento ao Brasil. Tiradentes seria nessa visão celebrativa, grande exemplo daquele que se sacrifica por um bem maior – no caso, a libertação da colônia do julgo da metrópole portuguesa.
Ainda que recorrendo a elementos próprios da iconografia de Tiradentes, Pereira da Silva, que doou o retrato ao Museu depois de finalizado em 1922, apresenta o alferes com uma postura imponente, não está cabisbaixo, não se trata de um “herói fragilizado”, “enfraquecido” como na tela Tiradentes esquartejado, de Pedro Américo, de 1893. Para Taunay, cuja concepção de que as imagens fabricadas para o Museu eram documentos históricos, já que nele baseados, confessaria que para o preparo do retrato de Tiradentes foi possível recorrer a uma “effígie muito popular em todo o paíz”. É muito provável que a ilustração “José da Silva Xavier, o Tiradentes” que integra o livro História de Portugal (1899), escrito por Manuel Joaquim Pinheiro Chagas, e cujo exemplar consta na biblioteca do Museu Paulista, tenha servido a Oscar Pereira da Silva como referência.
É certo que a imagem de Tiradentes gravada no livro e aquela contida no retrato guardam muitas aproximações, mas também algumas divergências. Se na primeira, Tiradentes aparece com a casaca abotoada até o alto, em uma clara associação à sua posição de alferes, no segundo, a escolha recaiu pela camisa branca aberta, que permitiu realçar a grossa corda pendida de seu pescoço.
Importante observar que a ilustração contida no livro foi, por sua vez, possivelmente produzida a partir de um busto em gesso pintado de Tiradentes doado ao Museu Paulista em 1898, e que ficava exposto durante os anos do primeiro diretor Hermann von Ihering, na sala “Objetos históricos”. Busto este que, na época da doação, chegou a levantar dúvidas entre os republicanos sobre a suposta origem “mestiça”, “mulata” de Tiradentes. Mas Benedicto Camargo, doador da peça, em carta remetida a Ihering, advertiria que “A côr escura do busto é do gesso colorido e não do homem.”
A sobrevivência da imagem de Tiradentes do busto doado ao Museu à gravura do livro, e da gravura ao retrato de Pereira da Silva, pode ser ainda encontrada em mais um suporte: na escultura dedicada ao “marty da Liberdade”, destinada ao Monumento da Independência, realizado por Ettore Ximenes para os festejos de 1922, e disposto às margens do riacho do Ipiranga – associação direta ao suposto lugar do Grito. O escultor não deixa de recorrer à convenção tão propagada em retratos, bustos e pinturas para figurar o personagem histórico morto na forca. Os longos cabelos, a barba e a corda ao pescoço, bem como a posição da cabeça, são detalhes que compõe a iconografia do conjurado, num diálogo muito próximo com a imagem pintada no retrato dentro do Museu, feito por Oscar Pereira da Silva.
O caso do retrato de Tiradentes, aqui analisado, é exemplar para se pensar aos moldes de Andreas Huyssen, para quem “o real pode ser mitologizado da mesma maneira que o mítico pode engendrar fortes efeitos de realidade.” Diante de tantos “Tiradentes” aqui expostos, pudemos acompanhar a construção da fisionomia do “martyr da liberdade” e da sua inserção entre os “Homens da Independência”, às margens (nada plácidas) do Ipiranga.
Para saber mais:
CARVALHO, José Murilo. A formação das almas. O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, (1990), 2007.
DOLCI, Mariana. Personagem imortal: a construção da memória de Tiradentes no Museu Paulista e no Museu da Inconfidência Mineira. Dissertação (Mestrado em História Social). PUC-SP, 2014.
LIMA JUNIOR, Carlos. Morto pelo desejo de liberdade: a reabilitação de Tiradentes em tempos de República. ALVEAL, Carmen Margarida Oliveira. Anais do VII Encontro Internacional de História Colonial. Mossoró, Rio Grande do Norte: Eduern, p. 1221-1232, 2018. https://www.academia.edu/48844080/_Morto_pelo_desejo_de_Liberdade_a_reabilitação_de_Tiradentes_em_tempos_de_República
Sobre o autor: Carlos Lima Junior é doutor em Estética e História da Arte pelo MAC USP, e pesquisador de pós-doutorado em História pela Unicamp sob financiamento da FAPESP. Coautor de O Sequestro da Independência (Companhia das Letras, 2022).