Skip links

V de Vasco: uma camisa de futebol, um museu histórico e a luta contra a homofobia e a transfobia no Brasil

Compartilhar

por Zonda Bez

Jornalista e pesquisador. Atua na área de museus desde 2011

Na partida do dia 27 de junho de 2021, véspera do Dia Internacional do Orgulho LGBT+, o time Club de Regatas Vasco da Gama causou ao entrar em campo com um uniforme que trazia as cores do arco-íris. Naquele mesmo ano, uma dessas camisas foi doada ao Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro (RJ). Em dezembro de 2022, a peça foi escolhida para fazer parte da exposição temporária “10 objetos: outras histórias”. Trata-se do primeiro objeto a fazer referência à população LGBT+ a ser exposto no museu, que completa 100 anos de existência.

O lançamento da camisa e a sua exposição são feitos memoráveis para Vasco da Gama e Museu Histórico Nacional, valendo aqui uma breve reflexão que entrelaça futebol, história, memória e afirmação de direitos humanos.

Imagem 1: Camisa de uniforme do Vasco da Gama em homenagem ao Dia do Orgulho LGBT+: exposição “10 objetos: outras histórias” (Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, RJ: dez.2022-jul.2023). Foto: Zonda Bez/Acervo pessoal.

O futebol é o esporte onde a homofobia tem se expressado de forma mais visível. Nos últimos anos, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol abriu processos, aplicou multas e determinou campanhas educativas a clubes brasileiros devido à homofobia protagonizada pelas torcidas organizadas – e a vista grossa das diretorias dos clubes.

Neste cenário, alguns times deram início, seja pelos motivos certos ou não, a ações por mais tolerância e respeito às populações LGBT+ nas arquibancadas e nos gramados.

Em agosto de 2019, por exemplo, o tribunal pediu esclarecimentos ao Vasco por cantos homofóbicos em uma partida. Cerca de dois anos depois, no mesmo dia de estreia da camisa LGBT+, o time lançou uma carta-manifesto, convidando o ecossistema do futebol e a sociedade “para um compromisso conjunto de debate acerca da homofobia e da transfobia”.

O chamado fez efeito: Mais de 20 mil camisas LGBT+ foram vendidas, mesmo com o preço pouco popular. Ao contrário de outras camisas com a mesma proposta, aquela do Vasco destacou-se por ser oficial.

A peça doada ao museu traz o autógrafo do argentino número 14 Germán Cano, então capitão do time. Ao fazer um dos gols da vitória, o jogador segurou a bandeira do escanteio, que naquele dia tinha as cores do movimento LGBT+, e virou símbolo da partida.

Na exposição do MHN, a escolha da expografia foi ‘emoldurar’ a peça assinada, criando um sentido visual de obra de arte. A flutuar no amplo espaço da galeria, ela é atravessada por espessas linhas de cor quando vista de frente – um grande arco-íris que vai do céu à terra. Em baixo, uma pergunta: “quantas cores tem o seu preconceito”?

Frente e verso da Camisa LGBT+ do Vasco da Gama exposta em “10 objetos: outras histórias” no Museu Histórico Nacional. Fotos: Zonda Bez/Acervo pessoal.

No conjunto da exposição “10 objetos”, a camisa tem destaque, não apenas por ser o primeiro item apresentado, mas principalmente, por sua concepção interativa: o público pode ‘entrar’ no arco-íris e assim fazer parte do conjunto da obra. Do seu lado direito, está a bandeira do MST; do lado esquerdo, uma rede indígena; diante de si, um traje de iemanjá. Como tudo isso se interrelaciona?

São itens que vão de encontro à concepção de museu tradicional estabelecida pelo MHN ao longo de um século, revelando sinais de mudança quanto às práticas cotidianas da instituição, que envolvem aspectos como aquisição, pesquisa, educação e comunicação.

Ao entrar para o museu, a camisa perde sua função de uso, torna-se documento e ganha outros sentidos. O acervo ventila-se com a chegada de algo novo: um espaço é aberto e, dessa brecha, é esperado que se irrompam novos diálogos.

Além do aspecto estético, inerente à condição de objeto de contemplação e estudo, a camisa alcança o campo educativo e pedagógico. A promoção da democracia, dos direitos humanos e a busca de uma cultura de paz podem ser pontos de partida para possíveis abordagens.

É essencial ter em conta que as questões de gênero e sexualidade não-hegemônicas são atravessadas por aspectos de raça, classe social, território, e outros mais, que também precisam ser mediados quando se define o que será preservado em um museu.

A pesquisadora Maria do Carmo Rainho, ao olhar as roupas em museus, aponta um caminho que vai além de aspectos formais em busca de “objetos com vida própria, presenças materiais que ativam outras presenças materiais e imateriais”.

No caso da camisa doada, detecta-se uma carência de biografia, parcialmente preenchida pelo autógrafo, podendo ser lida como um elemento de ‘validação’ das dissidências de gênero e sexualidade por parte de uma maioria cisheteronormativa.

Maioria essa que, aos poucos e com atraso, parece abrir os olhos para a insistente exclusão das minorias no futebol, alimentada por décadas de silêncios autoimpostos e que criaram raízes culturais profundas.

Ainda podemos olhar a homenagem vascaína no contexto de um ‘capitalismo identitário’, que investe em estratégias de marketing ‘um a um’, transformando marcadores de identidades e subjetividades em produtos de consumo, gerando assim novos nichos mercadológicos e agregando à marca valores ainda caros à sociedade – como solidariedade e empatia.

Mesmo em contexto dúbio, como é da natureza das coisas, o uniforme do Vasco segue fortalecido: deixa de ser apenas peça de colecionador, devido a sua excepcionalidade, para ser instrumento de mobilização das massas na luta contra a homofobia e a transfobia no futebol brasileiro.

Reprodução da Capa Lampião da Esquina, edição 32 (9 jan. 1981). Fonte: Centro de
Documentação Luiz Mott / Grupo Dignidade. Reprodução

São muitas as pessoas LGBT+ que veem no esporte um lugar para si, como espaço de sociabilidade, entretenimento e atuação profissional, e esperam não ter que seguir lutando por dignidade, igualdade e mesmo direito à vida, quando apenas se almeja a emoção de uma conquista.

Para encerrar, por coincidência ou sincronicidade, um fato histórico: no ano de 1981, 40 anos antes daquela camisa entrar em campo, o uniforme cruz-maltino vestiu um time de 11 travestis, estampando a capa do jornal Lampião da Esquina (1978-1981), uma publicação pioneira voltada ao público homossexual no Brasil.

O título da manchete é indubitável: “Brasil, campeão mundial de travestis”. As camisas do time de São Januário foram emprestadas pelo proprietário de uma loja de vestuário que apoiava, informalmente, quem buscava uma camisa para jogar as ‘peladas’ de fim de semana…O empresário, pois sim, era vascaíno.

  …………………………………………………………………………………………………….

PARA SABER MAIS:

GE. Vasco lança camisa em apoio ao movimento LGBTQIA+: “Respeito e diversidade”. Rio de Janeiro, 27 jun. 2021. Disponível em: https://ge.globo.com/futebol/times/vasco/noticia/vasco-lanca-camisa-em-apoio-ao-movimento-lgbtqia.ghtml. Acesso em: 10 mai. 2023.

RAINHO, Maria do Carmo. Robe de anjos e nuvens. MAGALHÃES, Aline Montenegro (org. et al.). Histórias do Brasil: 100 objetos do Museu Histórico Nacional, 1922-2022. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2022. p.400-403. Disponível em: https://drive.museus.gov.br/index.php/s/B2atn59L13PZnOs. Acesso em: 14 mai. 2023.

LAMPIÃO DA ESQUINA. Edição 32, 9 de janeiro de 1981. Centro de Documentação Luiz Mott / Grupo Dignidade. Disponível em: https://www.grupodignidade.org.br/projetos/lampiao-da-esquina/. Acesso em: 10 mai. 2023.

Comentário