Edifício “A Noite”: notas avulsas sobre o primeiro arranha-céu brasileiro
por William Bittar
Desde 1910, Bento Ribeiro era prefeito do Distrito Federal, sucedendo um período das grandes reformas urbanas iniciadas por Pereira Passos, em 1902.
Os ventos progressistas de uma metrópole moderna ainda assolavam a vida dos cariocas, que respiravam novidades diárias, como o aumento no número de teatros, cinemas, confeitarias, sorveterias, revistas e jornais.
Em 1911, no efervescente Largo da Carioca nº 14, próximo ao Hotel Avenida, surgia o primeiro vespertino da cidade, A Noite, que ganhava as ruas às 19h, noticiando as últimas do dia, chegando à tiragem de duzentos mil exemplares com circulação diária para atender o crescente número de leitores.
Heitor dos Prazeres compôs uma música homenageando o grande sucesso do jornal e aqueles que o distribuíam pela cidade, uma canção gravada em 1932, por Jonas Tinoco, que apresentava um quase lamento na Canção do Jornaleiro: Olha a noite! Olha a noite!
O próprio periódico encomendou uma escultura, em 1933, para homenagear aqueles meninos que vendiam o jornal pela cidade, instalada na esquina da Avenida Rio Branco com Miguel Couto.
Em 1925, por dissidências internas, Geraldo Rocha assumiu a direção do jornal, promovendo diversas alterações na linha editorial, maquinário, culminando com a decisão de construir um edifício próprio, monumental, num ponto estratégico da cidade, junto ao porto, na Praça Mauá, a partir de 1926, contando com investimentos estrangeiros.
Na mesma época, a capital da república recebia a visita de um urbanista francês, Alfred Agache, contratado pela municipalidade para desenvolver um plano integrado para a cidade, que demorou quatro anos para ser concluído.
O material que compunha o plano, apresentado em 1930, incluía memorial justificativo, fotografias, plantas, desenhos diversos, perspectivas monumentais, algumas delas indicando uma nova cidade que parecia emergir dos cartazes do filme Metrópolis, de Fritz Lang, imagens que se materializaram parcialmente em alguns centros norte-americanos, como Chicago.
Pouco mais de duas décadas passaram desde o Plano Passos e o Rio de Janeiro do prefeito Antônio Prado era objeto de outras transformações, algumas iniciadas no início da década de 1920 para abrigar a Exposição Internacional do Centenário da Independência, que incluía o arrasamento do Morro do Castelo, histórico cenário de desenvolvimento da cidade após sua fundação na entrada da baía.
Provavelmente inspirado pelos desenhos de Agache, os arquitetos Joseph Gire e Elisiário Bahiana desenvolveram o projeto para abrigar a nova sede do jornal “A Noite”, num terreno que abrigava o Liceu de Artes e Ofícios e algumas modestas construções.
As obras iniciaram em 1927: um arranha-céu de 22 pavimentos, construído em concreto armado, com cálculo estrutural desenvolvido pelo engenheiro catarinense Emilio Baumgart, considerado por muitos o patrono do concreto armado no Brasil e autor, entre tantas obras, dos cálculos para o Cinema Roxy e o icônico edifício do Ministério da Educação e Saúde Pública.
Na Praça Mauá, principal porta de entrada de viajantes por mar, erguia-se aquele gigante com mais de 100 m de altura que, em pouco tempo, tornou-se atração turística e uma ode à tecnologia nacional, “o maior edifício da América Latina”.
O notório título pouco durou, pois o Comendador Martinelli, em São Paulo, construiu o edifício com seu nome, inaugurado em 1934, mais alto que o carioca em alguns poucos metros.
Enquanto isso, na Capital Federal, “A Noite”, denominação consagrada para aquela torre, iniciava seu processo de ocupação antes mesmo de sua inauguração oficial, em 07 de setembro de 1929. Escritórios de advocacia e arquitetura anunciavam seus serviços, além de farto oferecimento para aluguel de salas nos periódicos cariocas.
Lucio Costa e Warchavchik ali estabeleceriam um escritório, ponto de encontro da futura geração de arquitetos modernos cariocas.
Os jornais, principalmente “A Noite”, destacavam em suas páginas fotos da obra, documentando a subida dos pavimentos naquela ousada estrutura de concreto, enquanto concorrentes criticavam a obra, narrando acidentes com mortes de operários.
A efígie do edifício foi estampada numa das faces de uma moeda comemorativa, em setembro de 1928, oferecida ao aviador Henry Delauney, pela sua perícia durante um acidente aéreo em Santa Catarina.
As empresas que participavam daquele desafio aproveitavam para incluir suas propagandas, utilizando o edifício como principal referência, muitas delas posteriormente o adotando como endereço comercial.
Em pouco tempo, nos seus vinte e dois pavimentos instalavam-se agências de notícias, consulados (Estados Unidos e Panamá), multinacionais, como a Philips, a companhia de aviação Panam, The Brazilian Coal Company Ltda. Um luxuoso salão de festas atraía a atenção promovendo bailes de carnaval ou comemorações de muitas organizações, como a própria Associação dos Empregados do Comércio, que ali promoveu a celebração do seu cinquentenário. O térreo abrigava confeitarias e restaurantes, que abriam inclusive nos finais de semana.
Em 12 de setembro de 1936, o edifício recebeu um ilustre ocupante cuja história se confunde com a obra arquitetônica: os estúdios da Rádio Nacional, um marco na comunicação da cidade e do país, com uma programação diversificada e geradora de verdadeiros ícones da cultura popular, aclamados em seus tradicionais programas de auditório.
Devido ao seu prestígio, a emissora foi encampada pelo Estado Novo, em março de 1940, tornando-se a porta voz do Governo Vargas.
Certamente a Rádio Nacional foi pioneira no hábito da criação dos fã-clubes composto por legião de seguidores de seus ídolos. Além de cantores, as novelas eram transmitidas ao vivo, com os radio atores, muito antes da implantação da televisão no Brasil, que ocorreu em 1950.
Seus estúdios abrigaram “O Direito de Nascer”, os seriados “Jerônimo, o herói do sertão”, “Aventuras do Anjo”, os humorísticos “Balança mais não cai” e “PRK-30” além das narrações de jogos de futebol e o radiojornalismo emergente, com o “Reporter Esso”, “testemunha ocular da história”.
Em 2012, após quase oitenta anos de atividades, a Rádio Nacional deixou as dependências de seu endereço tradicional.
Na praça Mauá, diante da portaria do edifício, era comum a concentração de fãs para ver aqueles que só ouviam, por vezes atacados e rasgados pela malta transtornada, episódios que ficaram no passado, substituídos pelas “celebridades instantâneas” do século XXI.
Aquele arranha-céu era referência na paisagem carioca e brasileira, ponto de visita obrigatória para turistas variados, levados ao seu terraço com visão panorâmica de grande parte da cidade, baía da Guanabara e até mesmo Niterói.
Ali subiram diplomatas, cantores, músicos, políticos, jogadores, misses para olhar a cidade de cima daquele gigante art-déco, repertório escolhido para suas fachadas e interiores.
A linguagem art-déco, depois de uma exposição em Paris, em 1925, recebeu ampla divulgação por todo o mundo, associada ao ideal de modernidade com suas formas geometrizadas, edifícios escalonados e utilização de materiais nobres como granitos e mármores em seus interiores.
Inspirados no plano Agache, os arquitetos Gire e Bahiana utilizaram tal partido para uma obra que representava os ideais de um Brasil moderno. No entanto, em suas fachadas, a ornamentação se apresentou discreta, com algum pequeno destaque para pavimentos especiais ou para portada, marcadas por alguns elementos verticais geometrizados, dispostos simétricos à marquise suspensa por tirantes, danificada por um incêndio em outubro de 1930, demolida e nunca reconstruída.
A volumetria optou por um paralelepípedo, sem escalonamentos perceptíveis, diferente de dois outros edifícios construídos no início dos anos 1930, em Nova Iorque, que receberam consagração internacional: o Empire State e o edifício da Crysler ou ainda o edifício paulista para o Banco do Estado de São Paulo, iniciado em 1939.
Ainda assim, a construção com mais de cem metros de altura, com pavimentos-tipo com cerca de 1000m² de área, se destacava do entorno imediato da Praça Mauá, como um monolito provocador, assim permanecendo por algumas décadas, até o fenômeno de verticalização da região central do Rio, provavelmente iniciado por esse edifício.
Assim como ocorrera com a Rádio Nacional, o jornal “A Noite” foi encampado pelo governo Vargas naquele mesmo 1940 e conseguiu retomar seu equilíbrio financeiro, que durou até a década seguinte, quando foi fechado em 1957, encerrando um ciclo de um verdadeiro patrimônio cultural da imprensa nacional, com ampla repercussão popular.
Propriedade da União, em 1985, segundo matéria do Jornal do Brasil, de 22 de fevereiro de 1985, o edifício era ocupado pela Radiobras, Ministério da Cultura, Instituto Nacional de Metrologia e o Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI.
Devido à grande circulação de público, o Corpo de Bombeiros promoveu uma avaliação sobre as condições de segurança do imóvel, atestando a necessidade imediata de obras de modernização em relação à prevenção contra incêndios. Entre outras iniciativas, foi implantada uma escada externa de metal, na fachada noroeste, e a previsão de outra, para a fachada sudeste, jamais concluída.
Em 2000, as condições do edifício já apresentavam necessidade de providências imediatas, que foram adiadas. Mesmo assim, foi tombado como patrimônio municipal pelo decreto 18.995, de 05/10/2000. Na 72ª reunião do Conselho Consultivo do IPHAN, realizada em 03 de abril de 2013, houve decisão unânime pelo tombamento do bem que deveria ser inscrito no Livro de Tombo Histórico e no Livro de Tombo das Belas Artes, com muitas restrições relativas a obras realizadas em conjunto por dois importantes ocupantes do imóvel: o INPI e a Empresa Brasil de Comunicação – EBC, criada em 2007. Tais obras promoveram muitas alterações nos pavimentos, o hall de entrada e os elevadores.
Em 2012, quando o edifício apresentava problemas de manutenção, o INPI e a EBC deixaram suas dependências, agravando ainda mais seu estado de conservação.
No início da década de 2020 o edifício foi totalmente esvaziado, cercado por tapumes e passou a integrar uma lista de imóveis da União anunciados pelo Ministério da Economia para venda à iniciativa privada, que incluía outras obras icônicas, como o Palácio Capanema, este último retirado do lote após reação de vários segmentos da sociedade.
Após diversas tentativas em leilões, em março de 2023 a Prefeitura do Rio de Janeiro arrematou o imóvel por R$28,9 milhões de reais e em julho do mesmo ano efetuou sua revenda para a iniciativa privada pelo valor de R$36 milhões, que manifestou a intenção de transformá-lo em residencial, incluindo alguns equipamentos abertos ao público em geral, como um terraço-restaurante e um museu dedicado à Rádio Nacional.
Delineia-se mais um capítulo na história quase centenária deste edifício, quase um personagem das tantas novelas que encantaram a população brasileira.
Assim como muitas delas, que venha um desfecho promissor.