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Eu carrego os teus cabelos comigo…

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por Vânia Carneiro de Carvalho

Ao abrir uma das gavetas da exposição Casas e Coisas, em exibição no edifício histórico do Museu Paulista (hoje nomeado Museu do Ipiranga), é possível encontrar a mecha de cabelos da imperatriz Leopoldina, primeira esposa de Pedro I (Figura 1). Ela é exibida ao lado das mechas da Imperatriz Amélia de Leuchtenberg, segunda esposa de Pedro I; da imperatriz Teresa Cristina, esposa de Pedro II; e daquela de sua filha, a princesa Isabel. Estas mechas de cabelos estavam guardadas há anos na reserva técnica do Museu, mas também já estiveram no salão nobre do edifício histórico. Para compreendermos as razões desses deslocamentos, é preciso entendermos as conexões da ideia de nação com o hábito que as pessoas tinham de carregar consigo os cabelos de entes queridos.

Figura 1 – Mecha dos cabelos da imperatriz Leopoldina, primeira esposa de Pedro I. A mecha foi doada ao Museu Paulista-USP por Lydia de Souza Queiroz, neta da marquesa de Valença, esta última uma das damas de companhia da imperatriz. A mecha encontra-se atualmente exibida na exposição de longa duração Casas e Coisas, que trata da construção de identidades de gênero no espaço doméstico.

É importante saber que o edifício histórico foi concebido para ser um monumento, uma espécie de panteão que, pela sua arquitetura imponente, marcava o lugar em que D. Pedro I proclamou a independência do Brasil. No salão nobre, localizado no centro do edifício, figura a pintura em grande formato “Independência ou Morte”, encomenda do governo monárquico ao artista Pedro Américo. Ainda que tenha se tornado um museu dedicado às ciências naturais desde a sua abertura para o público em 1895, a vocação primeira do edifício como memorial da Independência foi preservada em seu eixo central – o saguão, a escadaria e o salão nobre (Lima Jr; Nery, 2019).

A decoração do eixo central consolida-se na gestão de Afonso Taunay (1917-1945), que prepara os espaços internos do Museu para as comemorações do Centenário da Independência (1922). Esculturas e pinturas compõem uma cenografia épica. No centro do discurso museográfico estão os descendentes dos colonos portugueses, apresentados como os legítimos filhos da terra paulista. Eles são exaltados pelas suas ações exploratórias de gentes e de riquezas da terra, que teriam garantido o alargamento dos limites territoriais do que seria a nação brasileira. A estes personagens somam-se figuras militares, políticas e referências aos movimentos de independência (Brefe, 2002-3).

No salão nobre, em frente à pintura de Pedro Américo, e por encomenda feita por Afonso Taunay, instalaram-se imagens masculinas em cenas bélicas, políticas e retratos solenes. A exceção são as duas obras do artista Domenico Failutti de 1920 e 1921 respectivamente – Maria Quitéria de Jesus, que lutou travestida de homem contra os portugueses na Bahia, e D. Leopoldina e seus filhos (Figura 2).

Figura 2 – Domenico Failutti. D. Leopoldina e seus filhos, 1921, óleo sobre tela, 155 x 253,5 cm. Acervo Museu Paulista-USP, São Paulo. Reprodução: Helio Nobre/José Rosael.

Neste mesmo salão nobre estava exposta uma mecha de cabelos da imperatriz Leopoldina, primeira esposa de D. Pedro I, falecida em 1826 aos 29 anos de idade (Taunay, 1937). Nos registros do Museu consta que a mecha foi doada por Lydia de Souza Queiroz, que a recebeu da avó, Lidia Mafalda de Souza Queirós, marquesa de Valença, uma das damas de companhia da imperatriz. O que chama a atenção aqui não é somente a natureza ilustre daqueles de onde vieram os cabelos, mas o fato deles terem sido coletados, guardados e, depois, doados por mulheres, a marquesa e sua neta. A coleção do National Museum of American History, do Instituto Smithsonian, nos Estados Unidos, guarda mechas de cabelos de homens eminentes, como a de Sir Walter Scott, considerado o criador do romance histórico. A mecha foi cortada pela sua filha, Anne, quando o escritor estava gravemente adoecido. Os relatos sobre as mechas de cabelos de Andrew Jackson, presidente dos Estados Unidos entre 1829 e 1837, também envolvem mulheres. Em 1844, Fred Sumner, irmão do então presidente eleito James K. Polk, em visita a Jackson, ao vê-lo já abatido pela idade, pede uma mecha de seu cabelo para dar como lembrança à sua esposa. Conta-se que, em 1842, Jackson também distribuiu mechas de seus cabelos para duas centenas de meninas estudantes, sem se importar com o estado arruinado em que ficou sua cabeleira (BIRD Jr, 2013, p. 94).

Ofertar mechas de cabelos era moda no século 19, especialmente entre pessoas abastadas, brancas e de origem europeia. O uso de cabelos guardados em relicários-pingentes, broches ou anéis, mas também trançados para compor colares e pulseiras ou simplesmente a mecha de cabelos escondida entre as páginas de um livro ou de um álbum de fotografias foram práticas adotadas na Inglaterra e na França, e se difundiram para outros países da Europa ocidental, bem como nos Estados Unidos e Brasil.

Guardar uma mecha de cabelo era manter consigo uma parte do corpo do outro, uma lembrança de alguém querido, que já havia morrido, ou uma prova de amor, às vezes doada em segredo, ou uma demonstração de estima. Os cabelos, tratados como objetos de afeto, foram capazes de criar vínculos que transcenderam a racionalidade ou qualquer intenção utilitária. Eles fomentaram sentimentos e emoções advindas de acontecimentos, pessoas e circunstâncias.

O quadro feito com cabelos de Ana Joaquina Fonseca de Queiroz Telles, a segunda baronesa de Jundiaí, que também pode ser apreciado na exposição Casas e Coisas, é um exemplo das emoções ativadas por esse tipo de objeto (Figura 3). Irina Aragão dos Santos, pesquisadora que melhor estudou os objetos de afeto entre nós, nos ajuda a decifrar seus significados (Santos, 2014). Ao contrário do que parece às pessoas do século 21, todos os elementos do quadro são feitos com cabelos. Nesse caso, cabelos brancos, os mais raros e valorizados no período. As flores maiores são amores perfeitos em meio aos pequenos miosótis. As heras envolvem o entrelaçamento das mechas na base inferior do quadro. Flores, árvores e folhagens compunham uma gramática de sentimentos como amor, fidelidade, memória, eternidade ou mesmo fé. Os ramos longos, que caem sobre o monograma BJ, fazem referência à árvore salgueiro-chorão, e representam a tristeza pela morte da baronesa aos 85 anos de idade. Na vida afetiva privada, os cabelos são, portanto, ativadores de sentimentos.

Figura 3 – Quadro com cabelos da segunda baronesa de Jundiaí, Charleux, Paris/França, século 19, 32,5 x 23 x 3,8 cm. Os cabelos brancos da baronesa estão amarelecidos por conta da goma adraganta utilizada para estabilizar e melhor moldar os fios. Acervo Museu Paulista-USP, São Paulo. Reprodução: Helio Nobre/José Rosael.

Voltemos, agora, à mecha de cabelos da imperatriz Leopoldina, presente no salão nobre desde pelo menos o final da década de 1930. Os sentimentos de afeto acionados pelos cabelos se vinculam ao retrato da imperatriz, representada em ambiente doméstico cercada por seus filhos. Os cabelos fomentam a força mágica da relíquia, dão corpo à imagem da imperatriz. O uso dos cabelos, dentre tantas outras possibilidades testemunhais, traz para a esfera pública do Museu significados gestados na esfera privada, íntima, em que se quer situar as mulheres como força moral (Simioni; Lima Júnior, 2022). Tais migrações de sentidos indicam que a ação feminina na formação da ideia de nação brasileira se dá pela via emocional, afetiva. O amor maternal encarnado na figura da imperatriz sugere sua origem nas famílias brancas, aristocráticas e europeias, elevadas à condição de exemplo a ser seguido. Em oposição ao retrato da imperatriz está aquele de Maria Quitéria, heroína popular, que, pela sua excepcionalidade, reafirma a seara doméstica como o lugar das mulheres da nova nação.

A probabilidade de as mechas terem sido tardiamente colocadas por Taunay no Salão Nobre propiciou sua retirada da exposição e, com isso, a desativação de seu efeito-fetiche, que comprometia o interesse da curadoria do Museu em realçar a natureza representacional das obras ali presentes. Desde setembro de 2022, as mechas voltaram a ser exibidas, agora no contexto em que seus significados foram originalmente gestados, permitindo, com isso, que os visitantes compreendam os objetos de afeto como parte da construção de identidades de gênero.

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Para saber mais:

SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti; LIMA JÚNIOR, Carlos. Maternidade virtuosa: visões sobre a imperatriz. In: Paulo César Garcez Marins (org.). Uma História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2022, p. 124-133.

SANTOS, Irina Aragão dos. Tramas de afeto e saudade: em busca de uma biografia dos objetos e práticas vitorianos no Brasil oitocentista. Tese (Programa de Pós-Graduação em História Comparada) – Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2014.

TAUNAY, Affonso. Guia da secção história do Museu Paulista. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1937.

BREFE, Ana Cláudia Fonseca. História nacional em São Paulo: o Museu Paulista em 1922. Anais do Museu Paulista, São Paulo. N. Série. V. 10/11, p. 79-103, 2002-2003.

LIMA JÚNIOR, Carlos; NERY, Pedro. Do “campônio paulista” aos “homens da Independência”: interpretações em disputa pelo passado nacional no Salão de Honra do Museu Paulista. Anais do Museu Paulista, São Paulo, Nova Série, v. 27, 2019, p. 1-47.

CARVALHO, Vânia Carneiro de. Casas e Coisas. São Paulo: Edusp, 2022.

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