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Uma viagem à València: patrimônio e educação democrática

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por Carina Martins

Leio, no mesmo dia 20 de março, duas políticas de memória antagônicas: o governo da Espanha anuncia a criação de um museu de memória democrática em Madri e o governo federal, a desistência da proposta do Museu da Memória e dos Direitos Humanos. Lamentavelmente, a escolha da atual gestão foi estimular o silêncio ensurdecedor justo no ano em que ocorreu uma tentativa de golpe, com participação, omissão, prevaricação ou anuência de militares.

Em um momento no qual as palavras “democracia” e “golpe” estão diariamente nas manchetes dos jornais brasileiros, é importante pensar qual é o trabalho de memória que as/os profissionais podem estimular na construção de uma educação mais democrática.

Quando estamos desanimadas com nosso país, um giro pelo mundo para conhecer projetos exitosos pode ser um alento. Estive na cidade de València, na Espanha, instigada a conhecer mais do projeto vinculado a um grupo de professoras/es intitulado “Aula de História e Memória Democrática”. O grupo é composto por pesquisadoras/es em História Contemporânea e Didática das Ciências Sociais da Universitat de València (UV), a maior universidade do País Valenciano. E desenvolveu, entre muitas atividades, a identificação de nomes de ruas vinculadas ao franquismo (1939-1975). Tal iniciativa relaciona-se com a Lei da Memória Histórica da Espanha (Lei 52/2007), que previu – até a aprovação da atual Lei 20/2022 – a retirada de símbolos e monumentos públicos relacionados à comemoração ou exaltação da sublevação militar, da Guerra Civil e da Ditadura franquista.

Depois de décadas de inatividade desde a restauração democrática no final da década do setenta, a responsabilidade foi atribuída às administrações públicas, com apoio do governo para elaboração de catálogos de vestígios. Nesse sentido, o grupo desenvolveu um amplo trabalho de levantamento de nomes de ruas, em assessoria à Prefeitura, o que culminou na produção de um relatório de quase duzentas páginas que subsidiou políticas públicas, estratégias de participação popular e renomeação. Um trabalho árduo que revela um compromisso com a função social e a ética do conhecimento histórico.

Neste sentido, conhecer o “València en la Memòria”, desenvolvido pelo mesmo grupo, foi uma grande inspiração e surpresa. É um roteiro que comunica, por meio de painéis bem elaborados e atrativos, dezoito lugares históricos vinculados à experiência da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), quando a cidade foi capital da República.

Eu, particularmente, não conhecia um projeto tão bem estruturado de memória democrática nas cidades. Vejam bem, não é um site ou roteiro disponibilizado em aplicativo ou folheto; não é a identificação de lugares de memória e/ou escracho; não é um museu. São monolitos de concreto que rasgam pontos turísticos, ruas e hospitais para provocar a percepção de cicatrizes. As placas incrustradas em suportes de alumínio gritam por visibilidade, denunciam silenciamentos e apostam na sensibilização de sujeitos no tempo presente. Fazem parte, portanto, de uma política de memória em busca de reparação, justiça e, principalmente, de educação de gerações democráticas.

No célebre manual de interpretação de patrimônio da Stella Maris Murta e Celina Albano (2002), as autoras apontam características para a qualidade das placas e painéis: texto curto, simples e equilibrado com mapas e ilustrações; estrutura e materiais de boa qualidade; altura da montagem adequada às crianças e pessoa com deficiência; localização, grau de intromissão e poluição visual; uso de fotografias de antes e depois; grafia e estilo claro. Considero que este projeto gabaritou todos os quesitos. Vou deixar um exemplo para vocês avaliarem. Percebam como cada placa estimula a visitação do roteiro completo na cidade, com a listagem dos lugares e sua localização na planta desenhada. Ademais, é escrita em três línguas, catalão, castelhano e inglês, o que dialoga com o intenso fluxo de turistas na cidade.

 

Placa 11, Rua da Paz. Acervo Particular, 2024.

O que mais me impressionou foi a seleção de conteúdos e sua capacidade de mobilizar reflexões sobre ausências e presenças. Observar as Torres de Serrans, construções medievais, dão a sensação de monumentalidade e transporte no tempo ao visitante. Com o painel, posso pensá-las como estrutura de proteção ao patrimônio por terem abrigado obras do Museu do Prado na Guerra Civil. Consigo imaginar o esforço de equipes de profissionais e amantes da arte para salvar as obras artísticas, como uma esperança do retorno aos olhos do público e de pesquisadores/as. Emociono-me ao pensar que a arte sobreviveu em meio ao caos e à violência, como uma flor no asfalto que insiste em brotar.

A possibilidade de comparar fotografias, ler os textos informativos, aprofundar fontes por meio do QRCODE, me faz voltar e observar, com olhos de ver, as marcas de bombardeios nos monumentos. Percorro outros lugares e conheço um Refúgio para bombas aéreas. São vários na cidade, alguns sinalizados, outros não. O painel aponta números alarmantes de bombardeios. Quantas vítimas? Quantos traumas? Quantos esquecimentos? Como acessar essa memória dolorosa em uma cidade que se mostra tão pulsante, viva e diversa?

 

Placa 3, Refúgio da Rua Rispalda. https://espirelius.com/portfolios/valencia-en-la-memoria/, aceso em 19 mar. 2024

É interessante observar que as placas, instaladas em 2016 e 2017, também já trazem marcas da interação e do uso. Percebi algumas pichações, arranhões e até chicletes colados. Em todas elas, contudo, a escrita e a reprodução das fontes históricas estavam preservadas. Um indício do reconhecimento de sua relevância? É uma questão que valeria a pena ser investigada. Como os sujeitos se relacionam com as placas, em forma e conteúdo? Quais os sentidos são disparados por meio da apropriação das mesmas? Quais as estratégias de uso e leitura que docentes utilizam em sua mediação?

Vários turistas passam com seus patinetes e bicicletas velozes. Eles não param, não olham, não leem. Seu olhar parece congelado em si mesmo, na busca de uma selfie perfeita para suas redes sociais. É uma pena que na voracidade do consumo de paisagens, haja tão pouca sensibilidade com o lugar que pisam e sua densidade de memórias, temporalidades e culturas. Outros, contudo, pausam seus percursos para compreender a história da cidade e da luta pela democracia.

Eu também sou turista e meu olhar estrangeiro busca semelhanças, referências e inspirações. Volto ao Brasil com uma fome de ver projetos de enfrentamento à anistia memorial de 1979, ano que nasci. Já passou tempo demais: são seis décadas do golpe militar de 1964. Certamente, os silenciamentos sobre as vítimas, as responsabilidades individuais e coletivas, as reverberações do passado no presente e as violências perpetradas deixaram espaço para cenas recentes que gostaríamos de esquecer, com multidões nos quartéis pedindo e, pior, orando, por um golpe militar.

Ainda temos o elefante do 8 de janeiro recente para digerir, sabemos que é necessário apurar e punir. Mas a tarefa de lembrar, estabelecer pontes, produzir reflexões e sensibilidades está em nossas mãos. Se não o fizemos até agora, sabemos que “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

OBS: optamos por usar a grafia em catalão para o nome da cidade e do projeto.

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Para saber mais:

https://www.mpr.gob.es/memoriademocratica/Paginas/index.aspx. Página do Ministério da Presidência, Justiça e Relação entre as Cortes da Espanha, que apresenta as duas leis de Memória Democrática e disponibiliza uma série de documentos, listagens de lugares de memória e bibliografia.

https://espirelius.com/portfolios/valencia-en-la-memoria/. Página da agência de publicidade que desenvolveu a comunicação visual, com mais informações e fotografias.

https://www.eldiario.es/sociedad/gobierno-anuncia-creacion-museo-memoria-democratica-madrid_1_11228688.html. Reportagem sobre a criação do Museu da Memória Democrática em Madri, 20 de março de 2024.

https://iclnoticias.com.br/atos-ditadura-lula-desiste-museu-de-memoria/. Reportagem sobre a desistência de construção do Museu da Memória e dos Direitos Humanos, 20 de março de 2024.

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