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Fascínio e Terror: Museu Paulista/USP e os ecos mudos sobre a população negra e sua contribuição para a construção da cidade

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Renata Aparecida Felinto dos Santos

Em março deste ano, fui convidada a realizar um trabalho junto ao Museu Paulista/USP, e, devido a questões relacionadas à complementação dessa contratação, recebi outro convite: visitar a exposição de longa duração a partir da reabertura do museu e da reforma das instalações, que tomaram, ao todo, nove anos.

O Museu Paulista/USP, conhecido popularmente como Museu do Ipiranga, foi tombado por órgãos de preservação do patrimônio, o que significa que deve manter suas características originais. Por exemplo, a sala de exposições permanece com a mesma apresentação da década de 1960, quando as últimas pinturas foram instaladas.

A instituição foi projetada para ser um monumento em comemoração à Proclamação da Independência, em 1822, e construída entre 1885 e 1890. O edifício tem 123 metros de comprimento e 16 metros de profundidade, com muitos elementos decorativos e ornamentais. O acervo do museu também está tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o que significa que parte da sua expografia deve permanecer inalterada, conforme a concepção curatorial de Afonso Taunay, diretor da instituição por 28 anos, de 1917 a 1945. Sua atuação à frente da instituição ainda reverbera nos dias de hoje.

Como mulher negra paulista e periférica, essas reverberações saltam aos meus olhos e ressaltam a reincidência da sub-representação da contribuição da população negra de São Paulo para a construção da cidade. Esse fato é visível não apenas nesta instituição, mas em muitas outras pelo país afora, que adotam uma estratégia “ruybarbosiana” de invisibilizar nossa existência e participação na história do Brasil, para além das narrativas de subserviência.

Logo no início da visita, que fiz por conta própria como público espontâneo, que juntamente com o público escolar é dos mais presentes nos museus, me surpreendi com a magnitude do edifício, tanto na parte do complexo modernizada a partir da reforma, quanto na que foi restaurada. O hall de entrada nos remete aos melhores e maiores museus do mundo ocidental aos quais tive acesso, mostrando que sim, existe recurso.

O edifício, que funde os estilos neoclássico e neorrenascentista, segundo inúmeras fontes, é perfeito para a narrativa histórica que se propõe a contar sobre a fundação da República, que se irradia de São Paulo, a partir do advento da Independência, para o restante do país.

Tal acontecimento, que demarca a autonomia brasileira diante de Portugal, tem sua importância traduzida na imponência do edifício, diante do qual nos sentimos pequenos.

A parte da exposição de longa duração chamada “Uma história do Brasil”, que abrange a fundação da cidade de São Paulo como evento pacífico protagonizado entre indígenas e portugueses, sem grandes conflitos, é reiterada a partir das telas e esculturas apresentadas. No entanto, sabemos que os indígenas da população Guaianás resistiram a essa invasão, cujo bairro Guaianases, situado no extremo leste da capital, foi assim batizado em homenagem a essa população aguerrida.

Com a reconfiguração do espaço expositivo, foram instalados em inúmeros espaços do museu displays que buscam revisionar episódios históricos como este, já cristalizados no imaginário da população. Por exemplo, o vídeo com depoimento da Cacique Pequena, da etnia Jenipapo-Kanindé, que faz um contraponto a esse evento, ou ainda a Kota Mulanji Mona Kelembeketa, liderança de terreiro Banto, ambas inseridas no contexto dos vídeos nomeados “Territórios de Resistência”.

Diante do impacto de espaços como o Salão de Honra ou Salão Nobre, iniciativas como essa, que buscam amenizar os impactos da história narrada na perspectiva dos “invasores”, ou “vencedores”, são insuficientes e desaparecem durante a visita. No Salão Nobre está a célebre pintura do paraibano Pedro Américo de Figueiredo e Mello, um truque histórico, pois a tela que fabula acerca da Proclamação da Independência em solo paulistano, uma cidade tão xenofóbica, foi pintada por um nordestino.

“Independência ou Morte”, de 1888, é, para além de qualquer crítica apressada, um excelente produto do trabalho de professores da Academia Imperial de Belas Artes, junto aos seus mais pródigos egressos. Existe um aprimorado domínio técnico na composição, na qual identificamos movimento, proporção, e ação, que confere à obra o heroísmo criado acerca desse momento.

Nessa sala, em especial, vivi um momento de extremo desconforto. Realizei a visita ao final de uma manhã ensolarada na qual o museu estava repleto de visitantes, a maioria esmagadora de pessoas brancas. E o terror quase raptou o prazer da visitação ao me deparar com a postura de orgulho e de superioridade da qual se imbuíam essas pessoas ao adentrar nesta sala que lhes confere a certeza de superioridade, principalmente por não existirem espaços que enalteçam as presenças de outros grupos étnico-raciais como relevantes para a cidade.

Dessa forma, o fascínio que, num primeiro momento, o impacto da visão do edifício causa, converteu-se em terror devido ao reforço da narrativa que ele também representa e solidifica. Os sorrisos, as selfies, os comentários, os olhares traduziam uma postura de vitória. Ainda que quem sabe um pouco mais de história reconheça o forçamento histórico e compreenda que esse projeto civilizacional está em declínio desde sua fundação, esse sentimento de “propriedade histórica” reside na maior parte dessas pessoas que se inserem na lógica da branquitude.

Visitei todo o Museu Paulista/USP e seus espaços, e destacaria os seguintes: “Passados Imaginados”, que dentre outros aspectos, apresenta vídeos nos quais se desmonta a personagem bandeirante como um símbolo de poder para o Estado de São Paulo, a partir da apresentação dos elementos que compõem sua vestimenta; “Para entender o Museu”, que apresenta uma maquete que sempre foi observada com bastante entusiasmo pelo público visitante. Lembro-me bem do interesse que ela despertou em mim na única vez em que visitei a instituição, quando era graduanda no Instituto de Artes/UNESP, que também esteve no Ipiranga por muitos anos.

“Conservar brinquedos” é um núcleo que me gerou sentimentos contraditórios. É uma excelente forma de tratar das questões inerentes à conservação de objetos museológicos, devido à grande variedade de materiais que constituem os brinquedos em exibição e ao interesse que esses objetos mobilizam. Contudo, também é explicitamente um recorte de classe, e não há nenhuma placa acerca desta desigualdade socioeconômica persistente ao longo da história da cidade. Afinal, quais são as crianças que detinham esses brinquedos, alguns extremamente sofisticados em sua fatura?

Minhas famílias, tanto por parte de pai quanto de mãe, exceto pelo meu bisavô paterno, que era paraibano, o Felinto, são do Estado de São Paulo. Dessa forma, no mínimo remontamos ao século XIX, o que incorpora o período de construção e formação da narrativa e coleção institucional. Isso significa que existiam negros livres em muitas cidades do interior, como Tietê, e em bairros, notadamente os da Zona Norte, antes da ocupação das bordas da cidade e da construção de inúmeros conjuntos habitacionais pelos governos municipal e estadual, a partir da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab-SP), criada na década de 1960.

Refiro-me a essa origem pessoal porque somos paulistas. No entanto, não nos cabe nenhum núcleo mais cuidadoso acerca de nossa história no Museu Paulista/USP.

Em “Coletar Imagens e Objetos”, há menção ao meu segmento populacional, na intersecção de classe e de raça, a partir dos famosos e valiosos registros fotográficos da Coleção Militão de Augusto Azevedo, contendo 12 mil retratos captados entre 1862 e 1885. Também tive o enorme prazer de conhecer os retratos do pintor belga Adrien Henri Vital van Emelen, que registrou pessoas não como objetos exóticos que serviriam aos populares cartes de visite do século XIX, mas como pessoas que parecem providas de alma, sem o olhar perdido no horizonte ou nas problemáticas da própria condição socio-histórica.

No núcleo “Territórios em Disputa”, considero que algum mérito é restituído aos povos indígenas conhecedores destas terras. Apenas mudaria a palavra “adoção” da sabedoria indígena para “apropriação”, pois adotar parece também um procedimento benevolente e, em verdade, se não fosse por esse saber, essa formação e povoação por parte do segmento branco-europeu levaria muito mais tempo. E ainda assim, esse conhecimento foi desprezado em alguns momentos. Do contrário, o Parque do Ibirapuera não sofreria com um solo que precisa de manutenção constante por ser uma área de brejo e seu nome significar “árvore apodrecida”, nem o aeroporto de Cumbica sofreria com os nevoeiros, uma vez que a palavra representa “nuvens baixas” em Tupi-Guarani. Isso pouparia governos e a população de certos inconvenientes de um processo de urbanização que duvidou da nomeação originária do território e de suas características ambientais e físicas anunciadas nelas. Neste trecho da visita, escutei muitas pessoas em busca de lugar para descansar, pois o museu, sendo gigantesco, precisa de medidas de acessibilidade que considerem pessoas com mobilidade reduzida, seja pela idade ou por restrições temporárias.

Em “Mundos do Trabalho”, aguardei maior destaque para a população negra, ainda que fosse ao denunciar que os postos de trabalho no início do século XX estavam concentrados, como o núcleo exibe, na contratação de europeus ou japoneses, sendo impossível para a população negra recém-liberta do cativeiro, erguer uma vida digna, pois era evitada, desprezada e desqualificada a partir de imagens de controle que ou foram criadas nesse período ou foram fortalecidas nele, como o estigma de preguiçosos e desordeiros, devido ao fato de não terem oportunidade no proletariado industrial e, portanto, no emprego formal. Mesmo assim, esse espaço destaca o trabalhador baiano, o engenheiro Theodoro Sampaio, como figura central para o projeto de saneamento básico da cidade e de outras localidades. Não à toa, ele é homenageado como nome de rua no bairro de Pinheiros.

A constatação da representação insuficiente da população negra no decorrer da visitação à exposição de longa duração pode ser discutida pela direção e pelos profissionais de curadoria a partir da incorporação de mais objetos históricos no acervo, incluindo desde objetos de arte até objetos de uso cotidiano, que nos permitam levantar mais elementos para a construção da nossa presença na história do país e, notadamente, do estado e da cidade, pois as primeiras levas de pessoas escravizadas chegaram à cidade por volta de 1530. Também existem pesquisas que atestam que, possivelmente, alguns grupos não fizeram a rota tradicional que aportava em Pernambuco, Bahia ou Rio de Janeiro. A historiadora Regiane Augusto Mattos, certa vez, mencionou numa conversa que estava pesquisando essa possibilidade sob orientação de Luis Felipe Alencastro. Perdemos contato, e não tenho conhecimento da finalização da pesquisa que, na ocasião, era de doutoramento.

Ao final da visita, subi até o belíssimo mirante do Museu Paulista/USP, que nos possibilita observar que o projeto inicial extrapola os limites do museu, replicando os grandes bulevares parisienses, o que certifica a referência neoclássica em sua concepção. Que visão 360º desse bairro tradicional da cidade! Lá do alto, sentei-me para repousar um pouco antes de continuar minha visita à caminho de outro museu da cidade, pois tinha mais um compromisso na parte da tarde. Pude contemplar parte da cidade na qual nasci e cresci, de onde minhas linhagens materna e paterna também emergiram, e chorei, chorei longamente e extremamente emocionada imaginando crianças pretas, indígenas, não brancas que por décadas visitam esse museu e se deparam com a inexistência delas e dos seus e suas na abordagem curatorial.

Chorei em silêncio porque a tal disputa das narrativas é, também, uma disputa sobre quais grupos podem perdurar dignamente na história oficial da cidade e do país. A história do povo preto me fascina, e ela é o nosso ouro diante de tanto terror que nos causam, inclusive a partir de como estamos inscritos, ou não, nos documentos, sendo um museu desse porte um poderoso documento. Nós estamos e continuaremos aqui!

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