Azul igual ao manto de Nossa Senhora
Aline Antunes Zanatta
“O azul do bumbo é a cor do manto de Nossa Senhora Aparecida”, disse Dona Bene, ao lembrar como o seu pai, Mestre Osvaldo Caetano, justificava a cor de seu bumbo.
No dia dessas lembranças, o bumbo saia da casa do Mestre Osvaldo Caetano em Itu/SP – atual residência de sua filha Bene, conduzido por Erivam, filho de Dona Natalina, sobrinha de Mestre Osvaldo, para ser restaurado e cuidado até o dia do ritual em que os bumbos novos seriam batizados e o bumbo antigo acordado.
Após décadas no sótão e cimentado por uma reforma estrutural na casa, o bumbo antigo surgia pronto para ecoar novamente o seu som ancestral em território ituano.
Na manhã de 13 de abril de 2023, toda uma rede de pessoas comprometidas com o processo de acordar o bumbo de Mestre Osvaldo reuniu-se no quintal da atual residência de Dona Bene, em Itu.
Debaixo de uma majestosa árvore colocou-se uma mesa com uma toalha cuidadosamente escolhida pela dona da casa, contendo imagens de Nossa Senhora Aparecida. Pendurado no tronco da árvore estava o Estandarte do Samba de bumbo de Itu, desenhado e bordado pelas mulheres ituanas do Grupo Bordadeiras do Utuguassú.
Acima da mesa foram expostas fotografias escolhidas por Dona Natalina, pertencentes ao acervo particular de Dona Bene, do acervo iconográfico do Museu Republicano e outras retiradas do registro audiovisual realizado na década de 1970 de uma apresentação do Samba de Bumbo de Itu, em frente ao Mercado Municipal, pelo arquiteto e museólogo Júlio Abe Wakahara no contexto da produção do Diagnóstico Geral da Cidade de Itu, promovido pelo CONDEPHAAT.
Com essas fotos, cuja seleção participei ativamente, Mestra Natalina referenciou os mestres bumbeiros de sua família e trazia a sua ancestralidade ao centro do ritual do batismo. Sua mãe era descendente dos antigos tocadores de bumbo e sambadores da família Caetano, por isso, para acordar o bumbo de seu tio, pediu licença para as primas Conceição Caetano, filha de Lupercio Caetano, e Benedita Caetano, filha de Osvaldo Caetano.
No chão de terra, ao redor da mesa foi alocada a pareia de tambores novos: caixas e bumbos. Sob um tijolo, um degrau acima deles, foi reservado ao antigo tambor, agora restaurado, do Mestre Osvaldo.
Essa composição havia sido tratada anteriormente por Mestra Natalina e Mestra Rosa Maria Sales da Silveira, do Samba de Bumbo Nestão Estevam de Campinas/SP, pois o bumbo do Mestre Osvaldo seria acordado pelo toque dos bumbos mais velhos e, posteriormente, os bumbos novos seriam batizados e receberiam nomes.
O primeiro grupo a chegar foi o Samba de Bumbo de Cururuquara de Santana de Parnaíba/SP. Também percorreram o quintal e deixaram os tambores ao lado da pareia dos de Itu. Com eles, chegou Daniel Martins Barros Benedito, presente em vários momentos de encontros promovidos no museu.
Foi Daniel que produziu a primeira pareia de tambores novos ituanos em 2020. Em meio à pandemia, presenciei a chegada desses instrumentos na casa de Mestra Natalina. Essa pareia foi acrescida de um bumbo enviado por João Mário Machado, também do Samba de Cururuquara.
Enquanto a casa e o quintal eram coloridos pelas chitas das saias e camisas, chegava o ônibus de Campinas, trazendo o Samba de Bumbo Nestão Estevam.
No quintal em que Mestre Osvaldo, Zé Mulato, Lupércio e vários membros da família Caetano reuniram-se no passado para fazer samba de bumbo, chegavam os colaboradores dessa cerimônia tecida por muitas mãos, desde que Mestra Natalina ouviu o bumbo do Mestre Alceu José Estevam, herdeiro do Samba de bumbo Nestão Estevam. A partir desse dia, no auditório do Museu Republicano de Itu/USP, em janeiro de 2018, em um encontro sobre Inventários Participativos, as memórias da mestra ituana foram encontrando brechas. Mas, foi em janeiro de 2019, em uma ação educativa do Museu Republicano na sede da Folia de Reis Estrela do Oriente, na Vila da Paz, em Itu, que Dona Natalina disse-me que era descendente dos antigos bumbeiros de Itu.
Havia tempo que éramos amigas e aos poucos ela participava de nossos encontros no museu. Neste momento, a sua memória foi abraçada por uma rede de pessoas. Nesse processo, Mestre Alceu, jornalista e documentarista, tem um grande protagonismo, foi parceiro e incentivador, melhorando o registro antigo feito por Júlio Abe Wakahara.
No dia do batismo do Samba de bumbo de Itu, estava presente Mestra Rosa, esposa de Mestre Alceu, e a atual responsável pelo Samba de Bumbo Nestão Estevam, que estava acompanhada de sua família e também do amigo de Alceu e referência da cultura de matriz africana Mestre TC Silva. Os dois iniciaram o ritual, cantando o ponto também ecoado em Itu, em janeiro de 2018.
Dona Bene, filha do Mestre Osvaldo Caetano, recebeu um Baobá das mãos de Mestre TC, que distribuiu sementes, lembrando a necessidade do retorno à casa de nossos ancestrais. Mestra Natalina falou de sua trajetória até aquele momento, que a sua mãe era descendente dos antigos tocadores de bumbo e sambadores da família Caetano e que após a morte dela, morou na casa do tio Osvaldo. Então, o nome do Bumbo Ventania foi revelado e acordado pelos bumbos dos mestres mais velhos. Em seguida, os bumbos novos do samba ituano receberam nomes e tiveram licença do bumbo antigo do Mestre Osvaldo para serem tocados.
Acordar um bumbo é respeitar o tempo da ancestralidade da população negra. Os museus nesse caso são menores do que as memórias da população, mas juntos, em rede, instituições e trabalhadores de museus podem promover encontros, caminhar e exercitar a escuta e o diálogo. Os museus são geradores de memórias.
Para contribuir com tal iniciativa, em 2022, a deputada estadual Monica Seixas escutou com serenidade e apoiou de forma respeitosa o projeto de acordar o Samba de bumbo de Itu. Para que o samba de bumbo realizasse o seu batismo de forma digna e festiva, coube à participação da coordenadora do Museu da Energia de Itu, Ana Paula Sbrissa e da educadora da rede Museu da Energia, Fernanda Morais que abraçaram o projeto e com competência deram andamento aos trâmites junto à Fundação Energia e Saneamento do Estado de São Paulo. Para tanto, estávamos lá, nós três juntas festejando o bumbo e as possibilidades de tramas que os museus e as comunidades são capazes.
Mário de Andrade, Octavio Ianni e Júlio Abe Wakahara deixaram registros sobre o Samba de bumbo de Itu, contudo, nenhum deles registrou o ambiente privado dos mestres e suas famílias.
Desde o século XIX, as famílias negras do interior paulista protagonizaram o samba de bumbo, entretanto, em algumas cidades, como em Itu, o samba foi adormecido à medida que os mestres foram falecendo e os mais novos não deram continuidade à tradição.
Desde a década de 70 o samba de bumbo de Itu não era mais tocado por seus herdeiros e, agora, ao ecoar novamente, trouxe uma mulher à frente, distanciando-se de um passado em que as mulheres somente sambavam e não tocavam.
Ainda assim, a mobilização das lembranças da Mestra Natalina ressignificou as memórias guardadas por uma parcela da população negra, cujo silêncio persistiu durante décadas na narrativa oficial da cidade até acordar como diz o ponto do Samba de bumbo: “no tempo que o tempo deu”.
Para saber mais
ANDRADE, M. de. O samba rural paulista. Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, ano IV. vol. XLI.: Departamento de cultura, 1937.
IANNI, O. O samba de terreiro em Itu. Revista de Historia, São Paulo, n. 26; p. 404-426, 1950.
SETTI, Kilza. Diagnóstico geral da cidade de Itu para a implantação de um programa de ação cultural: Notas e Considerações sobre Aspectos da Cultura Popular. São Paulo: Condephaat, 1977, vol.05 (mimeografado).
MUSEU DA MÚSICA. Samba do terreiro. Youtube, 18 de junho de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nSF1FZ3jgCI/. Acesso em: 01 de maio de 2024.