O ferro como elemento de progresso e simbologia ancestral
por Ian Valentin
Partindo de uma perspectiva poética, é possível citar o ferro como um elemento da natureza que interage com o ser humano para o progresso do trabalho no mundo, no campo material e imaterial, “abrindo caminhos” para o suprimento das diversas necessidades que um povo pode apresentar, criando outros possíveis mundos de trabalho. A partir dessa reflexão, a presente análise refere-se ao tema “Grades e Portões” que está inserido na exposição permanente “Mundos do Trabalho”, instalada no complexo de salas 1-5 do 1º andar do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, também conhecido como Museu do Ipiranga, sendo este o mais antigo da cidade de São Paulo.
Desenhar, forjar, esculpir com ferro. Para então, proteger com ferro. Nesse contexto, o ferro é o princípio, o meio e o fim. A simbiose dessas ações alimenta a essência que move os trabalhadores de gradis em território brasileiro. Conhecidos como “serralheiros” ou “ferreiros”, são verdadeiros artistas de um ofício manual criterioso, dando vida a “portais”, já que, independente dos seus tamanhos e formas, carregam uma riqueza atemporal de significados, através de curvas e traços dotados de uma estética elaborada, digna de contemplação e imponência. Não é preciso fazer muito esforço para se deparar com essas construções: Estão nas casas mais simples da rua, ou nas mais imponentes, nas janelas de um parente que mora no interior de uma cidade, na entrada de um parque ou na frente de uma grande instituição em uma avenida movimentada… Os gradis estão por toda parte e ilustram o nosso cotidiano.
Ao trafegar pela exposição com foco no tema em análise, é apresentado para os espectadores um sucinto mapa com fotografias ao seu lado, que ilustram pontos onde foram instalados alguns gradis construídos pela Serralheria do Liceu de Artes e Ofícios, no século XIX, na cidade de São Paulo. Se a proposta geral da exposição é falar sobre “Mundos do Trabalho”, podemos indagar, quais “mundos” encontramos no tema “Grades e Portões”? Não há um direcionamento sobre a perspectiva de como se iniciou esse tipo de trabalho e de onde vieram a prática das ornamentações nessas confecções, que é o detalhe mais marcante e memorável da identidade dessas seculares construções de ferro. O tema parte de uma visão unilateral, ou seja, passeia por uma época e um território específico, além de apresentar-se de maneira pontual, com imagens que reforçam a sua própria unilateralidade, aniquilando possíveis imaginários e narrativas profundas diante da história por trás dos gradis brasileiros.
Menezes (1994, p.9) afirma que:
Ao museu não compete produzir e cultivar memórias. Mas analisá-las, pois elas são um componente fundamental da vida social. E como esta memória é multifacetada e socialmente localizada (dos combatentes em ambas as trincheiras, das mulheres e das crianças, dos políticos, dos fabricantes de armas e dos comerciantes, dos historiadores e literatos, dos tecnólogos e banqueiros e assim por diante), a exposição não deveria manter-se unilinear. Para tecer um texto espacial com todas estas variantes, a História Oral poderia também colaborar. Penso, ainda, até mesmo em outras possibilidades extraordinárias, que encontram paralelo em experimentações na História escrita, com narrativas a várias vozes (Burke 1992).
Diante dessa reflexão, é necessário jogar luz a um passado constantemente apagado e descredibilizado por fazer parte de uma oralidade retroalimentada por uma cosmovisão sofisticada que, por sua vez, as limitações praticadas pela colonialidade não conseguem dar conta.
Essa memória que resiste até hoje, traduzida em ferro forjado nas grades e portões pelas cidades, traz a história de uma tradição ferreira oriunda de um grupo étnico e linguístico chamado Akan, que tinha o domínio sobre os metais e o comércio de mineração na região da África Ocidental entre os séculos XV e XIX, atual região de Gana e Costa do Marfim. Esse grupo, juntamente com os Ashanti, os Fante e os Nzema, foram escravizados em território brasileiro, aplicando suas habilidades metalúrgicas como mão de obra especializada na construção do país.
Proibidos de expressarem os seus valores, costumes e crenças, os ferreiros africanos buscaram expressar a sua cultura por meio da arte de esculpir símbolos nas fundições dessas construções em metais. Dito isso, os povos africanos além de possuir uma vasta oralidade como memória, também já dominavam uma complexa e elaborada expressividade gráfica, por meio de sistemas de escritas diversos, dentre eles, o Adinkra, contrariando assim o caráter reducionista instaurado pela história colonizadora sobre as formas de expressão e de produção de saberes do continente africano. Como parte do Adinkra, a variação do ideograma Sankofa tornou-se o mais popular nas fundições das grades e portões pelo Brasil, cujo é um pássaro que voa para frente com a cabeça voltada para trás, sendo representado nessas construções de uma forma alusiva, por meios de curvas sinuosas.
Etimologicamente, Sankofa é a junção dos termos san (voltar, retornar), ko (ir) e fa (olhar, buscar, pegar), em ganês, que expressa o aforismo: “nunca é tarde para apanhar aquilo que ficou para trás”. Uma outra forma possível de traduzir o significado de Sankofa é: “para construir o futuro é necessário olhar para o passado”, ou ainda, como afirma Abdias Nascimento: “retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”. Partindo desse provérbio ancestral, não há como desmerecer a cosmovisão africana em uma exposição que se debruça sobre os variados processos de trabalho, situada em um equipamento cultural de referência histórica, tendo em vista que não foi somente a força braçal do povo negro escravizado que construiu o país, mas também, a sua imensa sensibilidade artística e valores étnicos, como pilares da criação de uma inter-relação entre trabalho, cultura e identidade. Portanto, é preciso naturalizar as referências, inspirações e criações afrodiaspóricas, sem precisar ter que aguardar ou segregar um tema ou espaço específico para delimitar tal importância. Buscar uma poética ancestral imersiva e onipresente, que permita reflexões pluralizadas sobre a construção de significados dos processos de trabalho, sendo esta uma das maiores engrenagens (se não a maior) de uma sociedade. Olhar para trás, como Sankofa nos ensina, é entender que não se pode prosseguir com a história contada nos museus sem dar a devida importância e protagonismo ao povo que forjou com o ferro memoráveis trabalhos e esculpiu com a sua cultura, a identidade brasileira.
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Referências:
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Acesso em: 26 de junho de 2024.
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Acesso em 24 de junho de 2024.
MAGALHÃES, Aline Montenegro. Da Diáspora Africana no Museu Histórico Nacional: um estudo sobre as exposições entre 1980 e 2020. Anais Do Museu Paulista: História e Cultura Material, 30, 1-29. 2022.
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição museológica e o conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 9–42, 1994.
Santos, L. C. F. dos, & Oliveira, E. D. de. (2020). Poética da ancestralidade: Revista Espaço Acadêmico, 20(225), 14-24.
VELOSO, Abraão. Tecnologia Ancestral Africana: Símbolos Adinkra, Espaço do Conhecimento, 2022.Disponível em: <https://www.ufmg.br/espacodoconhecimento/tecnologia-ancestral-africana-simbolos-adinkra>Acesso em: 26 de junho de 2024.
WAUTIER, Anne Marie. O trabalho em perspectiva: Identidade e Subjetividade. Universidade Federal de Pelotas, [s.d]. Disponível em: <https://wp.ufpel.edu.br/trabalho/files/2013/10/trabalhoemperspectiva.pdf>
Acesso em:26 de junho de 2024.
Grande mestre Ian, matéria extremamente necessária! Parabéns
Um ótimo texto escrito por Ian Valentin!
A equipe do Exporvisões: miradas afetivas sobre museus, patrimônios e afins agradece o comentário.