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Uma máscara de ferro e Anastácia Livre na exposição “In slavery’s wake”

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por Yhuri Cruz e Aline Montenegro Magalhães

Em 1817, o artista francês Jacques Etienne Victor Arago chegou ao Rio de Janeiro com a missão de registrar imagens da colônia a mando de sua metrópole. Permaneceu no Brasil, primeiramente por dois meses, retornando em 1820 quando ficou por mais 5 meses, a produzir imagens que retratam a vida e a cultura nas cidades do Brasil colonial. Durante sua estadia, capturou e descreveu em seu diário, dentre muitas cenas, a imagem de um homem escravizado no Rio de Janeiro, punido com uma máscara de Flandres e uma gargalheira, por motivos não descritos pelo artista. Arago, ainda em seu tempo, chama este seu retrato de ‘Punição de escravos’.

Quando seus diários foram editados e publicados na França, na década de 1840, a imagem ‘Punição de escravos’ ganhou status mundial na Europa, América e África como o retrato da cena colonial. Torna-se uma das imagens mais difundidas sobre esse tempo-espaço afro-atlântico.

Punição de escravos
Jacques Etienne Arago
1817 ou 1820

No Brasil, o retrato de Arago ganha um nome: Escrava Anastácia. O que significa dizer que a imagem sofre uma transição de gênero, do homem punido à mulher punida. Anastácia surge com uma série de míticas vinculadas aos motivos de sua punição com uma máscara de Flandres, que a impede de comer, beber e falar. Dentre as míticas, uma beleza rara é identificada como a razão da violência, o contraste da pele negra com os olhos azuis despertando o desejo do colono e o ciúme da senhora. Sua resiliência frente aos castigos físicos a aproxima dos mártires católicos e evoca a crença de poderes milagrosos como o da cura. O que se sabe é que a imagem da ‘Escrava Anastácia’ alcança o status de entidade na década de 1970 e, hoje, é parte fundamental do panteão das religiões de matriz africana e dos santuários afro-católicos das Irmandades de homens pretos, como a de Nossa Senhora do Rosário do Rio de Janeiro e de Salvador.

Altar da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Salvador
Exposição “In slavery’s wake”, Dez. 2024
Foto: Dorey Butter

O culto a Escrava Anastácia consiste na adoração da imagem. Posta em altares e outros espaços públicos e domésticos, é também impressa em pequenos papéis (santinhos), acompanhada de uma oração no verso, que são carregados junto ao devoto.

Instrumentos de tortura, como os representados no retrato pintado por Arago, integram coleções de museus, no Brasil e em outros países. O Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, por exemplo, preserva uma máscara de Flandres em sua exposição permanente. Entretanto, na legenda, a palavra punição não é mencionada. O uso do objeto é justificado como uma forma evitar que os escravizados que trabalhavam nas minas ingerissem pepitas de ouro. Na exposição “Brasil Decolonial: outras histórias”, inaugurada em 2022 com intervenções no circuito permanente do MHN, a legenda da máscara foi alterada para que outros usos e sentidos fossem informados aos visitantes: “[…] Imagem icônica da dor da escravização, a máscara de ferro há séculos é associada àquela usada por Anastácia, figura de devoção popular […]. Contemporaneamente, ela vem sendo ressignificada, tendo sido transformada, ao mesmo tempo, em símbolo do silenciamento imposto à população negra brasileira e da resistência de africanos e seus descendentes aos horrores da escravização”.

Mordaça
Acervo do Museu Histórico Nacional
Foto: Oscar Liberal e Francisco Moreira da Costa
Santinho “Oração à Escrava Anastácia”
Fonte: Site elo7 https://www.elo7.com.br/oracao-escrava-anastacia/dp/1160692?utm_source=pinterest&utm_medium=ad&utm_campaign=pinterest-performance-dpa-geral-dpa_fundo_funil&utm_content=pinterest-performance-dpa-geral-dpa_fundo_funil-60d_navegar&utm_term=shopping_1&pp=0&epik=dj0yJnU9ajBFZHlNRmlhYVdLWVpGT1Q5MHY4RFNvOVBmVXg5bTImcD0xJm49bDJ5LWVPVGRVRG84TV9PZFcyTDc0ZyZ0PUFBQUFBR1R3cFhZ

Parte dessa ressignificação acontece há dois séculos da produção do retrato do homem escravizado e 50 anos depois da Escrava Anastácia alcançar os altares afro-brasileiros. O artista Yhuri Cruz, em 2019, elabora a obra ‘Monumento a voz de Anastácia’, onde retira a máscara da imagem e, principalmente, elabora uma boca para este retrato. Para uma máscara de Flandres tão real e etnográfica, era preciso uma boca tão, ou mais, real quanto a máscara. O artista então transforma a imagem com a gargalheira tornada um colar de ouro que a enfeita e a empodera, não mais a castigando e sufocando, e uma boca insubmissa, num monumento de distribuição: uma Anastácia Livre.



Monumento à voz de Anastácia (Anastácia Livre),
(frente e verso)
Yhuri Cruz
2019

No verso dos santinhos distribuídos nas exposições em que o “Monumento a voz de Anastácia” é instalado, a oração que acompanha a imagem também muda. A inserção de poucas palavras altera o sentido da mensagem da resignação frente às injustiças para a luta por dignidade.

Que o monumento que cada visitante carrega no bolso possa emancipar pensamentos e nos libertar do racismo!

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“Em dezembro de 2024, foi inaugurada a exposição itinerante “In Slavery’s wake: making black freedom in the world” no National Museum of African American History and Culture, do Instituto Smithsonian, em Washington DC. A exposição é fruto de uma curadoria global, coordenada pelos professores Paul Gardullo e Anthony Bogues, envolvendo pesquisadores de seis países (EUA, Brasil, África do Sul, Senegal, Belgica e Reino Unido), com previsão de, até 2028, passar por museus de todos esses países.
Aline Montenegro Magalhães e Keila Grinberg foram as curadoras que representam o Brasil nesse projeto que envolve também outros pesquisadores do Brasil, como Martha Abreu e Vinícius Natal. As historiadoras propuseram temas e objetos do Brasil a serem abordados na exposição que trata sobre como a escravidão e as práticas de resistência e conquista de liberdade moldaram o mundo contemporâneo, marcado pelo racismo.
A história da escrava Anastácia integra a exposição e, aqui, apresentamos a versão em português do artigo escrito por Yhuri Cruz e Aline Montengro e publicado no catálogo da mostra, organizado pelos coordenadores do projeto e a pesquisadora Johanna Obenda.”

Núcleo Anastácia
Exposição “In slavery’s wake”, Dez. 2024
Foto: Dorey Butter

 

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