
100 faces de uma mulher marcada para viver
por Atila Tolentino
Em 13 de fevereiro de 2025, a grande líder camponesa Elizabeth Teixeira fez 100 anos e houve uma festa linda para essa “mulher marcada para viver”, como já é amplamente conhecida, no Memorial das Ligas e Lutas Camponesas, localizado na comunidade tradicional Barra de Antas, em Sapé/PB.

Fonte: Facebook do autor
Na verdade, foram três dias de festa para Elizabeth, como ela realmente merece. A programação foi chamada de “Festival Cultural da Memória Camponesa”, com atividades entre os dias 13 e 15 de fevereiro de 2025 e contou com atrações culturais, lançamentos de livros, feira agroecológica da reforma agrária, marcha da memória camponesa. Foi também o lançamento da exposição “Elizabeth Teixeira: 100 faces de uma mulher marcada para viver”, da qual tive a honra de fazer parte do planejamento e organização, em curadoria coletiva, com pessoas que me dão muito orgulho.
O melhor de tudo: contamos com a presença de Elizabeth Teixeira em sua terra, em seu território de lutas e memórias!

Fonte: Facebook do autor
As celebrações do centenário de Elizabeth Teixeira têm chamado muito a atenção e têm sido pauta de reportagens e notícias em diferentes mídias de todo o país, furando a bolha dos meios acadêmicos e dos movimentos sociais que tradicionalmente se envolvem com a temática da reforma agrária e da luta pela terra. Isso demonstra a força dessa mulher e a importância da sua persistência na resolução de um dos principais problemas sociais que historicamente assola o nosso país, fruto de nossa herança escravocrata: a falta de acesso à terra para trabalhar e nela (con)viver.
Nesse turbilhão de coisas que aconteceram em meio às celebrações do centenários de Elizabeth, não podemos deixar de registrar a feliz coincidência com o grande sucesso nacional e internacional do filme “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, que conta a história de Eunice Paiva, esposa do deputado Rubens Paiva, desaparecido político e assassinado pelo Estado durante a ditadura militar. Xico Sá e outros já apontaram o evidente paralelo desse filme com o clássico documentário “Cabra marcado pra morrer”, do cineasta Eduardo Coutinho, que conta a história de Elizabeth Teixeira e seu esposo João Pedro Teixeira, presidente da Liga Camponesa de Sapé, assassinado por ser uma das principais lideranças camponesas da Várzea paraibana, durante a década de 1960.
Não cabe aqui repetir o que Xico Sá já disse, mas eu, como pesquisador da Liga Camponesa de Sapé e da atuação do Memorial das Ligas e Lutas Camponesas em prol da memória desse movimento e da continuidade das lutas pela terra na atualidade, também não posso deixar de fazer outras correlações necessárias. O filme de Walter Salles tem o grande mérito de conseguir furar a bolha (novamente essa expressão é necessária) da chamada esquerda e trazer à tona essa memória difícil das mazelas da ditadura militar em nosso país. Isso é possível, em grande parte, porque conta a história de uma mulher branca, classe média, esposa de uma figura política importante, que residia num grande centro urbano do país. Ou seja, isso chega a causar empatia de parte da classe média, onde estão muitos grupos que se negam a enxergar os horrores cometidos pela ditadura militar brasileira e que periga se repetir.
“Cabra marcado pra morrer” retrata a história de um camponês preto, sua esposa e seus companheiros de luta, que viviam na zona rural de um estado periférico do Nordeste brasileiro. João Pedro Teixeira foi assassinado em 1962, antes da instauração do golpe militar, mas que demonstra como os movimentos sociais de camponeses já incomodavam o grande latifundiário, desembocando na perseguição sumária e violenta a esses movimentos após 1964.
A história de Elizabeth Teixeira, que “assumiu” a luta do marido é prova disso. Ela foi extremamente perseguida, presa e teve que viver na clandestinidade no interior do Rio Grande do Norte por 17 anos, com uma identidade falsa e podendo levar apenas um dos seus onze filhos. Os companheiros mais próximos de João Pedro Teixeira, conhecidos como Nego Fubá e Pedro Fazendeiro, foram presos pelo exército brasileiro e, após a sua suposta soltura, seus corpos nunca mais oficialmente foram encontrados, a exemplo do que aconteceu com o deputado Rubens Paiva.
Esses dois filmes são estratos que demonstram como a violência e os crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante o golpe militar pós-1964 tiveram seus tentáculos em todo o país e em todas as camadas sociais. A perseguição não foi só nos grandes centros urbanos, nem só com políticos ou artistas renomados. Foi também nos diferentes rincões do Brasil, com camponeses e camponesas, indígenas, trabalhadoras e trabalhadores anônimos, muitos deles esquecidos ou invisibilizados.
Mas voltemos a Elizabeth Teixeira, a nossa grande protagonista desta data. É importante frisar que a célebre frase a ela atribuída: “Eu marcharei na tua luta!”, dita no leito de morte de João Pedro Teixeira e repetida várias vezes por ela em diferentes momentos, marca a sua trajetória na luta por justiça social aos povos do campo, mas também, de uma certa forma, podemos dizer que encobre a sua atuação. Na verdade, Elizabeth também tem uma luta própria, com sua cara, características e especificidades, de mulher e mãe, que precisa ser reforçada nesse seu centenário. Elizabeth é insubordinada e indignada desde a infância com as injustiças que via sendo cometidas contra os camponeses por sua própria família, numa sociedade patriarcal, racista e que perpetuava o modus operandi de uma economia escravocrata. Ainda com João Pedro, ela própria minimiza que seu papel, nas Ligas, era ler jornais e as notícias aos camponeses, em sua esmagadora maioria analfabetos. Mas também reconhece que esse fato foi importante para a sua própria conscientização e para a formação política dos companheiros de luta e de terra.
Mas além da indignação, a luta de Elizabeth pautava-se no amor: “O sentimento que guardo e vou levar comigo é o amor. A nossa luta é fruto do amor. Foi o amor aos companheiros famintos que indignou João Pedro Teixeira e o conduziu à luta… A indignação vem em seguida e é muito importante. Essa indignação é fruto do amor. Ela nos estimula a reagir contra tudo que é injusto e errado”. É dessa forma que ela explica a sua luta em suas memórias compartilhadas com a pesquisadora Ayala Rocha.

Acervo pessoal do autor.
Na foto que eu tirei com ela, durante minha pesquisa de campo, parece que Elizabeth está me dizendo isso, mesmo com sua memória abalada atualmente por conta do Alzheimer. Era isso o que ela me dizia pelos seus gestos e pelo seu olhar. Foi isso o que senti.

Acervo pessoal
Na exposição temporária que ficará em cartaz no MLLC procuramos trazer essa tessitura de diferentes sentimentos, dualidades, movimentos e faces da personalidade dessa grande líder camponesa. E também da sua luta.
Da luta de Elizabeth Teixeira!
Texto adaptado de postagem em rede social: https://www.facebook.com/share/p/17mQs3iZEr/
Para saber mais:
TOLENTINO, Átila Bezerra. A ferida colonial, os museus e as lutas no campo: insurgências e práticas decoloniais no Memorial das Ligas e Lutas Camponesas. Tese (Doutorado em Sociologia), Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2024. Disponível em https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/123456789/32931.
ROCHA, Ayala A. Elizabeth Teixeira: mulher da terra. João Pessoa: Ed. Universitária da UFPB, 2016.
COUTINHO, Eduardo. Cabra marcado pra morrer. Documentário, 1984. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=DAPs2Jw6R3k.
Para saber mais:
TOLENTINO, Átila Bezerra. A ferida colonial, os museus e as lutas no campo: insurgências e práticas decoloniais no Memorial das Ligas e Lutas Camponesas. Tese (Doutorado em Sociologia), Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2024. Disponível em https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/123456789/32931.
ROCHA, Ayala A. Elizabeth Teixeira: mulher da terra. João Pessoa: Ed. Universitária da UFPB, 2016.
COUTINHO, Eduardo. Cabra marcado pra morrer. Documentário, 1984. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=DAPs2Jw6R3k.