
Nós e as águas
por João Carlos Cândido e Jean Gomes de Souza
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
(Fernando Pessoa, 1925)
As múltiplas formas do ser humano se relacionar com as águas no estado de São Paulo foram abordadas na exposição Nos rios da imaginação: dos leitos da criação às águas da cultura. Sediada na Galeria de Vidro da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ela esteve aberta à visitação gratuita entre os dias 25 de novembro e 10 de dezembro de 2024.

A mostra foi um dos frutos do projeto de pesquisa “As gentes e as águas: a ocupação humana e a hidrografia do planalto paulista no período colonial”, desenvolvido pelo Programa de Educação Tutorial (PET-História) da instituição. A iniciativa é composta pelos(as) estudantes Giovanna Silva, Gisele Reis da Silva, Luiza de Siqueira Silva, Mariana Guimarães Santos Jamas de Cerqueira Leite, Michelly Mitsuki Hashimoto, Rafaella Soares Rodrigues, Rhayra de Souza Miklos, Sabrina Sayuri Yasuda, Sarah Baptista Macedo, Thalissa Simões Oliveira, Cezar Tadeu Mungo Tezena, Gabriel Henrique Santos Mendes, Kaiky Aguiar, Leonardo Zorat Theodoro, Mario Carvalho dos Santos e Thiago Matheus Fernandes Silva; e tem como tutores, o Prof. Dr. Fábio Franzini e o Prof. Dr. José Carlos Vilardaga.
Nos rios da imaginação articulou diferentes dimensões da vida humana ligadas aos cursos d’água, tais como a cosmogonia, a alimentação, a economia, a produção de conhecimento, a arte, as sociabilidades e as resistências de diferentes populações. Ao evocar, em seu título, as subjetividades, ela se propõe – por meio da história e da memória – a expandir nosso imaginário empobrecido no que diz respeito aos rios, como bem definiu o Prof. Dr. Janes Jorge na mesa de abertura. Tal falta de criatividade se origina na convivência restrita que a maior parte das pessoas têm com a água nos dias de hoje: acessada, quase sempre, através dos encanamentos ou engarrafada, e no caso dos córregos, vistos como “causadores de enchentes e doenças”. Por sua vez, os setores privilegiados da sociedade a vêem como espaço de lazer e deleite, ao nadar em piscinas em áreas urbanas, ou viajar para a zona rural a fim de desfrutar de banhos de rios e cachoeiras ou passeios de barco.
A exposição é constituída por sete painéis de tecido – decisão que reflete a preocupação pela utilização de material sustentável – com textos e imagens impressos. Cada painel é dedicado a uma temática. Em “O rio e as devoções”, aborda-se as crenças indígenas, africanas, e cristãs; “Negras águas” se consagra ao contato dos africanos e afrodescendentes com os fluxos de água da cidade de São Paulo; “Rios da imaginação” se destina a pensar o rio como inspiração para a criação de mapas, pinturas, fotografias, instalações e ocupações artísticas e pesquisas acadêmicas; “A vida dos rios” se concentra nas representações (artísticas e científicas) da fauna e flora fluvial e no aproveitamento desses recursos naturais por diferentes comunidades; “Os rios: usos e desusos” atenta para o emprego da hidrografia para o transporte, abastecimento, descarte de efluentes e como força motriz e fonte de matéria-prima; “As palavras e os rios” ressalta o papel das águas como tema da produção escrita; por fim, “Os nomes e os rios” destaca as várias localidades de São Paulo nomeadas pelos povos originários, entretanto, eles foram lembrados apenas por sua contribuição pretérita, apesar de ainda hoje persistirem no território paulista, lutando pelo reconhecimento de suas terras.

É digno de nota o tratamento dado às imagens, em sua maior parte sem legendas. No projeto expositivo elas desempenham uma função de ilustração, de confirmação ou complementação das informações comunicadas nos textos. Como nos ensina Ulpiano T. Bezerra de Meneses (2003), as imagens devem ser tomadas como vetores para a investigação de uma sociedade. Para trabalhar com elas, afirma o historiador, é necessário situá-las em seus respectivos “contextos situacionais”, traçando sua trajetória de produção, circulação, consumo e ação. Isso porque elas não possuem sentido próprio. Estes são construídos e atribuídos a elas por meio das interações sociais.
Os painéis estão atados por um emaranhado de linhas, fios e cordames em tons de azul, verde e marrom. Por um lado, as cores remetem às diversas tonalidades das águas, aos cursos d’água de São Paulo. Por outro, formam uma trama de múltiplas histórias, com esses rios e córregos simbólicos conectando materialmente as diferentes dimensões humanas ali expostas. A unidade almejada pelos curadores não é explorada apenas visualmente, mas também sonoramente. Isso porque há, também, uma caixa de som a reproduzir ininterruptamente o murmúrio de água pela Galeria de Vidro.

Ao centro da sala, está disposta uma vitrine dentro da qual se encontram objetos de cultos de matriz africana e católica, livro e revista, miniaturas de animais e de uma embarcação, uma camiseta da escola de samba Vai-Vai, bem como lixo e sementes. Ao que parece, a reunião desses artefatos, de caráter cenográfico, visa dar materialidade a parte do conteúdo dos painéis.
As memórias acerca dos rios e córregos paulistas foram mobilizadas de três formas. A primeira, por meio do recolhimento pelos(as) estudantes de relatos de conhecidos seus, impressos no verso de cartões postais produzidos por eles(as) com imagens do local descrito. A segunda, convidando os visitantes a preencherem esses mesmos cartões, os quais foram sendo juntados aos demais. Ambas ações constituem a iniciativa intitulada “Nas águas da memória”. O terceiro, “Cartografia da memória”, propõe a intervenção (através da escrita ou do desenho) naquilo que foi chamado de “mapa de memórias fluviais”, um retângulo de tecido com um rio azul pintado ao centro, fixado à parede. Desse modo, tal como os cursos d’água, a exposição se encontra em constante transformação.


A capital paulista possui, segundo a contagem oficial, mais de 200 cursos d’água. Em sua maioria, eles correm ocultos debaixo da cidade. Trata-se de uma escolha do poder público, fruto de noções de progresso e desenvolvimento econômico que ainda hoje orientam as políticas de urbanização implementadas em São Paulo. Nos rios da imaginação trouxe à superfície o papel central dos cursos d’água para a formação da sociedade paulista e as relações com eles estabelecidas ao longo dos séculos, submergidas pela concepção utilitarista que orientou o desenvolvimento do estado. A questão se faz da maior importância, haja vista a privatização da empresa de abastecimento da água consumida diariamente pela população.
Para saber mais
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, p. 11-36, 2003.
PESSOA, Fernando. [O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, (1925)]. In: BERARDINELLI, Cleonice (org.). Fernando Pessoa: antologia poética. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2016, p. 95-96.
RAMALHOSO, Wellington. Cidade de São Paulo tem mais de 200 rios; quantos você vê? UOL, São Paulo, 25 fev. 2016. Disponível em: https://bit.ly/3Zpmsrc. Acesso em: 28 nov. 2024.
Sobre os autores
Jean Gomes de Souza
Historiador (0000853/SP), doutorando em história no Programa de Pós-Graduação em História Social da FFLCH-USP e bolsista FAPESP. Mestre, bacharel e licenciado em história pela mesma universidade. É membro dos grupos de pesquisa Deslocamentos, Mares e Rios (CNPq-Unifesp), Metamorphose | Materialidade e Interpretação de Manuscritos e Impressos da Época Moderna (CNPq-UnB), Estudo e Caracterização de Documentos em Suporte de Papel (CNPq-USP) e do Embira – Laboratório do Papel (USP). Foi curador das mostras Celebração dos 90 anos do nascimento de Wesley Duke Lee (SP-Arte/Rotas-brasileiras, 2022), Jonas de Barros, artista ituano (MRCI-USP, 2024) e Transformações do edifício do Museu Republicano de Itu (MRCI-USP, 2024). Durante a graduação, integrou diferentes projetos de pesquisa na Divisão de Acervo e Curadoria do MP-USP, sendo financiado pelo PUB-USP e pelo PIBIC-CNPq.
João Carlos Cândido Silva Libardi Santos
Historiador (0000071/SP) e biólogo, mestrando em história no Programa de Pós-Graduação em História Social da FFLCH-USP. Atuou em acervos e arquivos públicos e privados. Durante a graduação integrou diferentes projetos de pesquisa na Divisão de Acervo e Curadoria do MP-USP, recebendo financiamento da CODAGE-USP. Foi consultor do núcleo “Cristandade Oriental e Oriente Próximo” na Coleção Ivani e Jorge Yunes, sendo curador da exposição A outra África (Museu de Arte Sacra de São Paulo, 2020). Auxiliou no inventário e catalogação de obras de arte da B3 – Brasil, Bolsa, Balcão. Foi colaborador do Instituto Hercule Florence de estudo da Sociedade e do Meio Ambiente no Século XIX Brasileiro.