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Retrato de Dona Leopoldina de Habsburgo e seus filhos: intenções e reproduções do imaginário.

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por Gabriel Guimarães Yamauchi

 

A pintura “Retrato de Dona Leopoldina de Habsburgo e seus filhos” está localizada no “Salão nobre” do Museu Paulista, integrando a exposição “Uma história do Brasil”. Finalizado em 1921, é de autoria do pintor Domenico Failutti. O gênero da produção é a pintura histórica, retratando uma mulher adulta, D. Leopoldina, em ambiente doméstico, cercada de suas filhas, e com um bebê, seu filho d. Pedro, no colo ao centro. As meninas mimetizam a postura da mãe, segurando animais, a irmã ou um brinquedo. Todas as personagens aparecem ornamentadas com adornos luxuosos. O quadro sem moldura possui 255 centímetros de altura e 155 centímetros de largura. A representação utiliza-se da tinta à óleo, com diversas cores e poucos contrastes luminosos.

Retrato de Dona Leopoldina de Habsburgo e seus filhos”, acervo Museu Paulista.

O retrato foi encomendado por Afonso Taunay em 1920, então diretor do museu, no contexto da comemoração do centenário da Independência no Brasil. O uso original da obra estava associado a outras produções que, nas palavras de Ana Paula Simioni “eram destinadas aos mais diversos espaços do Museu, e que buscavam ‘materializar’ visualmente, fatos e vultos do passado, tidos por decisivos na construção da história pátria”. Sendo assim, é possível determinar que essas produções imagéticas na perspectiva do diretor eram tratadas como um retrato fiel da história, quando em realidade eram representações de uma narrativa historiográfica até então vigente. Tal perspectiva estava conectada ao projeto de consolidação do estado de São Paulo como o berço de uma história nacional e suas “origens” num período de disputa por protagonismo regional no centenário da independência em 1922. Tal encomenda relaciona-se com o que Ulpiano T. Bezerra de Meneses categoriza como “teatro da memória”: através de uma seleção mental, ordenamento, interpretação e síntese cognitiva na apresentação visual, cumpre-se um papel pedagógico junto ao público. Tendo tal abordagem em mente, é necessário destacar o caráter documental da cultura material para compreender sua posição na narrativa construída.

Portanto, tendo em vista que a história é sempre produzida num contexto específico e as opções por representações memorialísticas refletem uma posição ideológica, em um primeiro momento pode-se discutir a posição que o objeto tomou na exposição durante o período contemporâneo a Taunay. Em uma primeira camada de análise pode-se focar na opção pela representação de uma história institucional de elite, apagando outros agentes de outros setores sociais e econômicos. Em uma segunda instância, a partir do quadro, pode-se notar alguns elementos iconográficos que buscam inserir Leopoldina na narrativa da independência de uma maneira particular. Primeiramente, chama-se a atenção para a construção do ambiente doméstico ao redor das figuras femininas, trabalhando com um ideal de gênero associado ao cuidado e à maternidade, apagando uma agência política direta no processo da Independência, em contraste com a memória que o Museu Histórico Nacional adotou através da pintura “Sessão do Conselho de Estado”, de 1922, realizada por Georgina de Albuquerque, que mostra a Imperatriz assinando a Independência.

A Leopoldina do Museu Paulista carrega o futuro Imperador, ou seja, o futuro líder masculino que irá governar o Brasil. A opção demonstra um caráter passivo da figura histórica. Além disso, para Ana Paula Cavalcanti e Carlos Lima Junior, sua posição no salão nobre da Independência seria justificada por Taunay devido ao caráter moral de Leopoldina. Na contemporaneidade, o quadro e a exposição de Taunay são tratados como documentos de uma determinada produção historiográfica tradicional do século XX, destacando-se algumas intervenções na exposição que, por ser tombada pelos órgãos de preservação, não pode ser alterada.

Junto a isso, um importante debate que permeia o campo da museologia trata das políticas de pesquisa nessas instituições, destacando-se o caráter dialético do museu como local de produção de pesquisa e, ao mesmo tempo, objeto de pesquisa. Ao se deparar com o retrato de Leopoldina numa perspectiva documental levando em consideração seu momento de produção, a materialidade do objeto e a própria “imaginação museal”, pode-se pensar outras narrativas com base nesse item. Em um primeiro momento, é possível refletir quanto ao papel ativo do retrato na construção de relações de gênero na sociedade. Reforça-se o imaginário de um ideal de mulher, do cuidado de crianças a partir de um caráter privado e a idealização do mundo doméstico. O alcance não se estendia apenas aos visitantes da exposição, a pintura circulava por meio de representações em massa na vida cotidiana, amplamente reproduzida em cartões postais e livros didáticos, por exemplo.

Cartão postal, acervo Museu Paulista.

 

Ainda nessa linha, pode-se destacar o caráter institucional da produção ao se identificar a agência do Estado e da pesquisa historiográfica na construção dessas relações de gênero e seus usos ideológicos, legitimando-as através de um suposto passado de uma elite. Um exemplo seria a relação que se estabelece entre reforçar o cuidado como uma responsabilidade feminina individual junto à ideia da criança como o futuro da nação: constrói-se e divulga-se um modo de existência onde os cuidados e responsabilidades coletivos e/ou públicos não são uma opção, mas o papel da mulher na sociedade, assegurando o futuro por meio do cuidado e da dedicação doméstica, enquanto ao homem cabe o mundo público e do trabalho remunerado. Quanto a esse tópico, cabe ressaltar também as relações estabelecidas entre objetos e o ser humano, discutidas por Vânia Carneiro de Carvalho no ambiente doméstico, no cotidiano, em consonância com a construção dos papéis de gênero do XIX ao XX. Pode-se também encarar a obra a partir das intenções e relações projetadas pelo sistema republicano em relação à monarquia e os usos desse passado, percebendo alguns limites e continuidades na construção de uma narrativa nacional e oficial. Por exemplo, representa-se um passado glorioso e luxuoso em um ideal branco de mulher, apagando a escravidão como meio de produção de riqueza. Além disso, pode-se pensar também nas devidas conexões com os ideais civilizacionais e de branqueamento característicos do século XIX e que permaneceram pelo século XX.

Em conclusão, o quadro “Retrato de Dona Leopoldina de Habsburgo e seus filhos” é permeado de diversas questões complexas. Ao decorrer de sua existência teve um uso estratégico na construção de narrativas nacionais e disputas regionais. Foi objeto da disputa da memória e da produção historiográfica do século XX e hoje em dia é visto como um documento, uma fonte sujeita a análises. Teve papel fundamental na construção de um imaginário a respeito da independência, imaginário esse que têm sido questionado por pesquisas, curadoria e setor educativo do museu. O papel do item hoje, quanto ao público, é cumprido na exposição “Uma História do Brasil”, que se inspira em Ulpiano quanto à prerrogativa: Ensinar História só pode ser, obrigatoriamente, ensinar a fazer História e aprender História, aprender a fazer História. A exposição busca elucidar como a produção da história muda de acordo com o tempo em que o historiador está produzindo, utilizando-se de contrapontos que instigam o visitante a refletir quanto à decoração oriunda de uma historiografia característica do início do século XX. Textos, intervenções, questionamentos e o material didático produzido pelo museu contribuem para o ensino sobre algumas chaves  do processo de como se fazer história em um museu.

 

Para saber mais: 

CARVALHO, Vânia Carneiro de. Cultura Material, espaço doméstico e musealização. VARIA HISTÓRIA, Belo Horizonte, vol. 27, nº 46: p.443-469, jul/dez 2011.

CHAGAS, Mário. Pesquisa Museológica. In MAST Colloquia – Vol. 7 Museu: Instituição de Pesquisa. (org. Marcus Granato e Claudia Penha dos Santos) Rio de Janeiro: MAST, 2005.

MENESES, Ulpiano T. B. Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição museológica e o conhecimento histórico. In Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Ser. v.2 p.9-42 jan./dez. 1994

Material Para Professores: “Uma História do Brasil”. Isabela Ribeiro de Arruda, Denise Cristina Carminatti Peixoto e Vanessa Costa Ribeiro (org.). — São Paulo: Museu Paulista da Universidade de São Paulo, 2022.

OLIVEIRA, Cecília Helena S. O espetáculo do Ipiranga: Reflexões preliminares sobre o imaginário da Independência. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Ser. v.3 p.195-208 jan./dez. 1995

SIMIONI, Ana Paula; LIMA JR, Carlos. Heroínas em batalhas: figurações femininas em museus em tempos de centenário: Museu Paulista e Museu Histórico Nacional, 1922. In Revista de pós-graduação em ciência da informação da Universidade de Brasília. MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol. 7, nº13, jan./ jun. de 201

TROUILLOUT, Michel Rolph. “Silenciando o passado: poder e a produção da história”, tradução de Sebastião Nascimento. Curitiba: huya, 2016

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