Ciranda dos monumentos em Buenos Aires
por Aline Montenegro e Francis Picarelli (Historiadora, colunista de Internacionales do programa Espaço Caleidoscópio – Suin Radio. @francispicarelli)
Assuntos da diversidade e da interculturalidade vão sendo repensados na medida em que novos processos políticos vão se configurando e conquistando espaços onde antes, discursos mais conservadores eram privilegiados. Essas novas configurações políticas vão acercando as sociedades e engendrando, por sua vez, diferenças e desigualdades, representadas por determinados símbolos e também expressões artísticas e monumentos.
Podemos identificar um alto nível de diversidade no cenário cultural do século XXI, fruto dos antecedentes históricos e políticos. Porém com camadas sociais com pouca consciência do que isso significa no mundo contemporâneo.
Durante os últimos 200 anos, os países latino-americanos, por vezes, testemunharam as tentativas de reconhecimento de suas histórias autóctones e das memórias africanas, chegadas nessas terras de além-mar, promovendo assim, a fusão e a gestação de nossa “poderosa Pátria Grande”, como Bolívar se referia à América.
De modo gradual, à medida que se presenciava, em alguns períodos históricos, um avanço de quadros progressistas no poder, se podia constatar, por toda a América, a conquista de uma realidade pluricultural. Mas essa realidade não estaria (e não está) assegurada de forma definitiva e ainda será necessário um longo trajeto, para levar a cabo políticas efetivas no que se refere à construção de uma história menos eurocêntrica, branca e patriarcal.
Aos olhos conservadores, esses novos olhares históricos e seus personagens, bem como, sua dimensão social, não se incorporam como um fato a ser considerado e muitas vezes não se aproveita todo o potencial do que representam e têm a aportar.
Monumentos nunca foram apolíticos nos espaços urbanos. Nada têm de plácidos ou pacíficos, sendo um recordatório de uma herança política colonial, por muitas vezes figurativos de um determinado discurso político. Quando tais narrativas se viam obrigadas a dar lugar a outras, mais plurais e críticas, os monumentos que as representavam, como em uma ciranda bem dançada, “cediam” seus espaços às novas representações, plasmadas nas obras de outras figuras históricas.
É importante ter sempre a consciência de que a história vigente é a que interessa ao poder de turno e por isso é a que será por ele perpetuada. Politizar a mirada, o olhar acerca dos espaços e de seus monumentos é entender isso. E dar lugar às narrativas das minorias e dos “vencidos”, também é fundamental para uma crítica aprofundada e uma análise histórica séria.
Fazer a reflexão do porque a escassa representatividade feminina, negra e indígena é um fato concreto, é importante para o entendimento da violência direcionada a esses grupos sociais. Como esquecer a figura das duas “Evitas” do Ministério do Desenvolvimento Social argentino, apagadas pelo governo de Direita de Mauricio Macri, por 4 anos? Ou o caso da estátua de Juana Azurduy, que foi citado pelo historiador Paulo Garcez Marins, em recente reportagem sobre os ataques a estátuas como parte das manifestações contra o racismo, e sobre o qual falaremos aqui?
Trata-se de uma disputa de memória que marca a política contemporânea Argentina, envolvendo uma escultura de Cristóvão Colombo, que ficava no entorno da Casa Rosada e o monumento à liderança indígena das lutas pela independência da América, Juana Azurduy (1780-1862), construído para ocupar o lugar do navegante genovês, durante o segundo mandato da Presidenta Cristina Kirchner (2012-2015).
O anúncio da retirada de “Colón”, para a inauguração do novo monumento no lugar, se deu em 2013, levantando polêmicas, desagradando a classe média alta portenha e a comunidade italiana. Afinal a escultura, de autoria do artista italiano Arnaldo Zocchi, havia sido presenteada à cidade, pela comunidade de imigrantes, em 1921. Se por um lado a identidade com a Europa servia de argumento para a manutenção de Colombo no lugar inicialmente instalado. Por outro, essa parcela de argentinos considerava ilegítima a homenagem, uma vez que a “Coronela” elevada a “Generala” por CFK, nem argentina era, mas sim, “boliviana” (entre aspas porque quando Azurduy nasceu não havia a Bolívia ainda).
Mas, não houve choro, nem vela que impedisse que, em 2015, o grandioso monumento à Juana Azurduy, construído com um milhão de dólares doado pelo presidente da Bolívia, Evo Morales, tomasse o lugar de Colombo.
À época, re-vivia-se o sonho da “Pátria Grande”, com governos de esquerda na presidência de países latino-americanos, como Dilma Rousseff no Brasil, Rafael Corrêa no Equador e José Mujica no Uruguay, além dos dois já citados. Nesse cenário, buscava-se no passado, uma referência para os ideais políticos em questão, como a união dos países de “Latinoamérica”, o que faz com que a origem “boliviana” de Azurduy não fosse um problema, mas sim, uma solução.
Foram somente por 2 anos que Azurduy ocupou o lugar que antes fora de Colombo. Em 2017, já sob a gestão do adversário político de Cristina Kirchner na presidência, Maurício Macri (2016-2019), o grandioso monumento perdeu seu posto, sob a justificativa das obras do “Metrobus”, realizadas durante essa gestão. O alargamento de ruas e avenidas não acolheu Azurduy, que foi parar em frente à antiga sede dos Correios, atual Centro Cultural Kirchner, símbolo maior dos Kirchneristas. Sua nova localização pareceu um recado “macrista”: “toma que a hermana boliviana é de vocês”.
Por enquanto, o espaço contestado junto à Casa Rosada segue sem monumentos, a espera de novas polêmicas.
E Cristóvão Colombo? Continua fragmentado em 186 partes no Espigón Puerto Argentino, na Costanera Norte. Ficará ali esquecido? Será por algum grupo reivindicado? Será que seu destino é um museu? Ou deverá ocupar outro espaço da cidade? Não sabemos.
O que sabemos é que os monumentos dizem muito mais sobre os interesses e as questões colocadas no presente do que efetivamente sobre o passado ao qual remetem. Entretanto, a disputa é justamente sobre o passado histórico. Que passado e que personagens merecem o espaço público? Pelo que temos visto, parte da população, a que tem lutado contra o racismo, destruindo referenciais do passado colonial e escravagista, sabe muito bem os que não merecem lugar na cidade. Mas, no caso aqui exposto, o que está em jogo é uma ciranda dos monumentos no ritmo da dança dos poderes.
Leia também, “Monumentos e insurreição popular: põe no museu ou deixa quebrar?”, o segundo artigo desta série https://tcastro.com/exporvisoes/2020/06/20/monumentos-e-insurreicao-popular-poe-no-museu-ou-deixa-quebrar/
Olá. Parabéns e obrigado pelo texto, Aline e Francis. Adoro as danças. Por isso, não desejo ver a morte de dançarinos. 😉
Obrigada pelo retorno, Manuzinha Carioca. Nós também adoramos as danças e seu alto valor pedagógico. Beijos
Excelente. Obrigado pelo texto muito oportuno para continuarmos a compreender a monumentalização dos passados e das histórias como um ferrenho campo de disputa !
Obrigada a você, Beto, pela reflexão e também pela parceria! Beijos
Acabei de encaminhar este texto para a minha turma de Patrimônio Cultural no Brasil. Em tempos de pandemia e atividades remotas emergenciais , textos sensíveis sobre o patrimônio e a memória sempre serão bem vindos. Muito boa iniciativa!! Cada dia mais apaixonado pelo blog.
Obrigada, Jezuilino, por esse retorno tão positivo. Nos incentiva a seguir escrevendo as nossas miradas afetivas sobre os patrimônios, suas tensões e desafios. Um beijo grande e boa leitura para seus alunos!
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