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Por uma ciranda sem degolas e esquartejamentos

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Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius de Moraes

por Marcio Magalhães de Andrade (historiador  e coordenador pedagógico da Espaço e Vida – Viagens Culturais)

O que pensamos e sentimos hoje mudará no futuro. Mesmo que não mude durante nossa existência, será algo distinto em momento posterior, independentemente de nossas vontades. Assim é a História, assim são os símbolos.

Seres humanos diferenciam-se de outros animais, entre outras coisas, por sua capacidade de simbolizar. Símbolos mudam, são ressignificados mesmo quando conhecemos seus contextos de produção. A cruz cristã, tão celebrada por diversos fiéis há milênios, teve sua origem em um instrumento feito para torturar e assassinar.

Percebam que não sacralizo os símbolos, entendendo-os como imutáveis e absolutos. A dinâmica atribuída à História também vale para eles mas meu ponto é: no conflito de perspectivas, de ideias e paixões contemporâneas, é legítimo destruir os símbolos que não nos convêm ou que foram associados a práticas condenáveis e perniciosas? Uso propositalmente o verbo “destruir”, não os verbos “modificar”, “deslocar” ou “ressignificar”.

Sou um historiador e professor errante. Integro uma tribo quase nômade, desprovida de livros didáticos ou apostilas. Nem sala de aula essa tribo possui! Ou melhor, nossa sala é qualquer lugar em que haja paisagem. Ruas, praças, lagoas, rios, prédios, calçamento e, claro, estátuas.

Quando observamos estátuas integrando a paisagem, não as percebemos como ofensas violentas, imutáveis e eternas. Para nós, a estatuária constitui mais uma preciosa fonte para a compreensão de uma série de relações no tempo e no espaço. Relações que também são de poder, não ignoramos. Mas isso, a nosso ver,  só enriquece as narrativas e amplia as possibilidades de compreensão sobre o passado e o presente.

Alguém seria capaz de defender a destruição de uma estátua de Tiradentes nos dias de hoje? É possível que a figura seja irrelevante para as novas gerações. Na melhor das hipóteses, um nome associado ao feriado nacional do dia 21 de abril. Mas nem sempre foi assim. Falo algo a respeito no texto “Mentiras de bronze e almas natimortas”.

Sendo a prática de destruir monumentos uma regra, mera questão de oportunidade para um grupo hegemônico ou organizado, aceitaríamos que racistas destruíssem, por exemplo, a “Cabeça de Zumbi”, localizada no Rio de Janeiro?

Monumento-de-Zumbi-dos-Palmares
Foto: Marcos Tristão 20/10/2014 / Agência O Globo. Disponível em: Marcos Tristão 20/10/2014 / Agência O Globo

Por falar na “Cabeça” de Zumbi dos Palmares. A leitora e o leitor sabiam que o molde para este monumento em homenagem à resistência negra no Brasil chegou ao país pelas mãos de um liberal, chamado por muitos da esquerda de “reacionário” e “protegido de Roberto Campos”? Liberal, vale ressaltar, que era muito amigo de Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. A história está registrada no livro O Itamaraty na Cultura Brasileira, organizado por Alberto da Costa e Silva.

Permitam-me um resumo. Leonel Brizola era governador do Rio de Janeiro e desejava abrir um concurso para erigir um monumento em homenagem a Zumbi dos Palmares. Darcy Ribeiro, que era o vice-governador, lembrou da estatuária africana que tinha visto do Museu Britânico, possuidor de magnífica coleção de estátuas do Benim (Nigéria). Pediu então a José Mário Pereira, amigo em comum do diplomata José Guilherme Merquior, que este obtivesse uma reprodução em gesso de uma das estátuas nigerianas. Como ninguém conhecia efetivamente o rosto de Zumbi, Darcy pretendia obter um modelo que pudesse ser desenhado por Oscar Niemeyer (a obra foi criada pelo arquiteto João Filgueiras Lima – o Lelê – não por Niemeyer).

Arte_yoruba,_nigeria,_testa_da_ife,_12-15mo_secolo
Cabeça de Ifé. Imagem disponível em
https://www.britishmuseum.org/collection/object/E_Af1939-34-1

A “Cabeça” do líder e guerreiro quilombola virou monumento no Rio de Janeiro em um contexto político muito rico para o fortalecimento dos discursos sobre a negritude. O governador Leonel Brizola, eleito pelo Partido Democrático Brasileiro (PDT), chegou ao poder tendo apoio de muitas lideranças negras e de frações do próprio Movimento Negro. Os detalhes desta história são narrados por Mariza de Carvalho Soares no livro Cidade Vaidosa. Imagens Urbanas do Rio de Janeiro (organizado por Paulo Knauss). Roberto Conduru também dedicou artigo com muitos detalhes ricos sobre a “Cabeça de Zumbi” na Revista de História (“Zumbi Reinventado”, 2007).

Durante os primeiros anos da década de 1980, houve algumas divergências sobre o local onde a homenagem deveria ser materializada. Largo da Carioca, Aterro do Flamengo ou Presidente Vargas? As escolhas tinham suas justificativas. Mas a proposta de monumento, que virou lei em 1983, só foi concretizada em 1986, em local próximo à antiga Praça XI. Compôs com a Passarela do Samba e com a escola Tia Ciata um conjunto em homenagem à luta e à cultura dos povos escravizados africanos que aqui chegaram e viveram.

Nem por isso a iniciativa foi consensual. Para lideranças da Pastoral do Negro da Igreja Católica, por exemplo, o monumento constituía um contraponto progressista e de resistência popular à estátua equestre de Duque de Caxias. Para os críticos, no entanto, a imagem representada pela “Cabeça” não guardava relação com os negros brasileiros. Anos depois, já na década de 1990, foram feitas propostas para transferência da obra para Lapa ou Largo da Carioca. Por esta época, a escultura era considerada por alguns um “erro que deu certo”. Segundo Amauri Ferreira, que era presidente do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras, não era mais necessário mexer com Zumbi, pois a duras penas ele estava se tornando uma referência. A homenagem começava a virar efetivamente um monumento.

Percebo o valor e a importância das lutas simbólicas mas creio que todos desejamos mais. Nosso combate pode e deve ser travado no dia a dia, contra práticas genocidas, racistas, misóginas, homofóbicas e fascistas. Que o nosso arsenal simbólico cresça: dezenas, centenas, milhares de monumentos para instituirmos as memórias de negros, mulheres, indígenas, trabalhadores e perseguidos políticos, vítimas de tantas e tantas formas de violência.

Quanto às antigas homenagens, absurdas sob olhares contemporâneos. Que sejam ressignificadas como forma de evitar qualquer tipo de concessão a práticas discriminatórias e violentas contemporâneas. Mas destruir… Vejo no ato, mesmo que justificado como resistência, uma prática autoritária e perigosa. Nos rumos inimagináveis e muitas vezes cegos e apaixonados da história, o que restaria de monumentos para revisitarmos e refletirmos incansavelmente sobre o passado?

Como disse o amigo Renato Freedman (um ser do carnaval carioca), efêmeras somente as esculturas das escolas de samba, feitas para brilhar por pouco tempo no espaço e o restante em nossas memórias.

  Leia também da série “Memórias em disputa, monumentos em litígio”: “Ciranda dos monumentos em Buenos Aires” por Aline Montenegro e Francis Picarelli https://tcastro.com/exporvisoes/2020/06/15/ciranda-dos-monumentos-em-buenos-aires/ “Monumentos e insurreição popular: põe no museu ou deixa quebrar” por Fernanda Castro https://tcastro.com/exporvisoes/2020/06/20/monumentos-e-insurreicao-popular-poe-no-museu-ou-deixa-quebrar/